domingo, 17 de março de 2019

O primeiro tiro a gente nunca esquece

O primeiro tiro a gente nunca esquece

A primeira paixão da
minha vida foi uma professora. A tia do segundo ano. Uma linda mulher morta
pelas costas por um balaço desferido pelo marido, o grande amor da sua vida.
Grande merda amar um ser humano que não presta. Só Jesus Cristo na causa. Pelos
comentários que circularam na época, foi calibre 38. Eu tinha uns 6. Fiquei
boiando na acurácia da informação balística. Não entendia nada daquilo: amor, armas,
morte.

É um terrível lapso, mas, não me recordo do nome dela.
Jaquisson, não. Jaquisson era o meu melhor amigo e morreu atropelado nas
férias. E a culpa foi toda dele. Pedalava na contramão com a sua bicicleta nova,
como se as crianças fossem anjos, estrelinhas no céu e blá-blá-blá. Conversa
fiada. Pimba! Era uma vez o Jaquisson. Ninguém da escola compareceu ao velório.
Só ficamos sabendo do desaparecimento dele quando não respondeu com o seu
peculiar sotaque nordestino à chamada oral da professora substituta.

Filho de uma puta! Por que tinha que morrer justo nas
férias de julho?! Sobramos eu e Pãozinho Seco, o meu segundo melhor amigo
naquele antro educacional chamado escola, onde cantávamos, perfilados frente á
bandeira, a droga do Hino Nacional, cuja letra jamais decorei. Falta de decoro de
verdade é roubar um sonho. Por dias, ficamos vagando a esmo pelo pátio durante
a hora do recreio que durava míseros vinte minutos. Sentíamo-nos enganados,
corrompidos, perdidos como cachorros caídos do caminhão de mudanças.  

Penso que é preciso eu mudar de vida. Sempre cabe mais
uma beiradinha de felicidade. Ando metido em projetos estranhos, pueris,
ingênuos. Outro dia, comecei a contá-los para um amigo e ele disse que aquilo
não era um projeto de vida, era depressão. Síndrome de Burnout, ele cacifou.
Tomei o meu chope e o mandei às favas. Eu não pretendia comer a professora do
segundo ano. Tinha acabado de sair da fase oral. Mamãe não me saía da cabeça. Convenhamos:
Freud era foda.

Não sei o que me atraía na meiga professorinha, se a
voz adocicada, se o jeito brejeiro. Era qualquer coisa, menos, sex appeal. Pode
ter sido por causa do aroma gostoso do seu cabelo. Cheirava a bolo-saído-do-forno.
Aquela experiência olfativa remetia direto à minha avó. E, se me fazia lembrar
vovó, só podia ser coisa boa. Apesar da tenra idade, eu teria apreciado que ela
me pagasse um lanche na cantina. Crush com coxinhas de frango-e-catupiry. Aquilo
era o máximo. Certo dia, as professoras e os badecos levaram os alunos para
conhecer a maravilhosa fábrica da Crush. Eu queria mesmo era leite com chocolate.
Mesmo assim, segui na excursão. Não era dono do meu nariz. Aquele aroma
artificial de laranja nunca mais me saiu da memória.

Como eu ia dizendo, ando acometido por certos projetos
simplistas para ir tocando em frente a minha vida. Tenho 53. Se estivesse viva,
a minha ex-professora, de cujo nome miseravelmente me esqueci, contaria perto
de 80. Imagino como seria o nosso encontro casual: gerontologicamente, mágico. Se
sentisse de novo aquele cheirinho de bolo caseiro, talvez desejasse devorá-la,
desde que o banquete fosse consentido. Me amarro em velhinhas com os cadarços
da minha camisa-de-força. Sim, essa frase não faz o menor sentido. Não, Jaquisson,
não. Jaquisson (se ele não tivesse pedalado de alegria até morrer no
para-choques de um fusca) e Pãozinho Seco estariam contando histórias prolixas
sobre as suas próstatas, as suas amantes mal remuneradas e tudo o mais. Uma íntima
anarquia mental me agita. Talvez, eu devesse escrever poesia novamente. Até
hoje me tomam por poeta. São demais os perigos dessa vida, principalmente, para
quem nunca leu um soneto sequer do Vinicius.

Assim vivemos. Sobrevivemos nos dias bicudos de um
mundo carniça. Gente sofrendo perrengues em longas filas de espera. A grana
curta. Um maldito oficial de justiça que está apenas cumprindo o seu papel e
nos bate à porta. Homens que batem em mulheres. A saudade de pais que já não
podem ser abraçados. Coisas desagradáveis, enfim. Deveríamos estar mais
irmanados contra a misteriosa ditadura do viver a qualquer custo.

Carrego misérias no colo. As minhas e as do resto do
mundo. A desgraça da hora que tem ocupado a pauta da mídia brasileira é o
ataque mortífero que dizimou estudantes numa escola em Suzano. Apoplético, como
se convulsionasse as estribeiras, como se não fosse ele responsável máximo pela
segurança pública, o governo incita o povo a se defender da violência periclitante
portando armas de fogo. Um senador da república chegou a recomendar que os
professores guardassem revólveres na gaveta para a eventualidade de ter que
matar um aluno ou um invasor. A proposta, portanto, é transformar o professor
num assassino. E mais: que as maçãs sejam sumariamente substituídas por balas
calibre 38.

Sinto-me esgotado como uma joão-bobo que perdeu o gás.
Síndrome de Burnout. Que droga é essa? Por onde andará aquele velho amigo que
só queria me ajudar mas que saiu sem pagar a sua parte da conta? Pensamentos em
ebulição. Eu faço planos de uma vida mais modesta. Gols de bicicleta. Carro na
garagem. Ir a pé pro trabalho. Tomar cerveja em copo americano. Torresmo frito.
Ah… Torresmo frito… Celulares no modo silencioso. Revoadas de passarinhos.
Pernas de louça. Águas de março. E aquele cheiro gostoso de bolo novinho que
não me sai da cabeça.

O primeiro tiro a gente nunca esquece publicado primeiro em https://www.revistabula.com



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