domingo, 3 de fevereiro de 2019

Você tem um passado promissor pela frente

Você tem um passado promissor pela frente

Mataram a tiros Dona Carmem, a mulher que me lia as mãos. Perdi o chão; ela, a vida. Eu soube que restou cogitado pelos técnicos da funerária serrá-la ao meio, num corte sagital que pegava da forquilha até o cocuruto, um recurso hostil, grotesco, porém, estratégico, para acomodar, fazer caber o seu cadáver gorducho dentro de dois ataúdes de pau-bosta. A família ria de estupefação e ódio. Óbvio que a ideia era esdrúxula, desumana e de péssimo gosto. Nem o pior escritor da rua pensaria numa presepada como aquela. Tiraram o dois-ou-um e optaram pela incineração do corpo num procedimento trabalhoso que lhes custou o couro. As cinzas foram acomodadas dentro uma lata de querosene. Dava pra polvilhar o Jardim da Especulação Cósmica, na Escócia. A vidente pesava 270 quilos e já não conseguia soerguer-se, quem diria caminhar e dançar a valsa vienense. Quisera ter 10% da cabeça-animal de um Drummond, de um Millôr. Mas, não sou flor que se cheira. Só me resta a sujeira das botas de Bukowski. Sentada numa bigorna em seu humilde cafofo, ela fazia previsões imprevisíveis, tergiversando sobre o meu futuro. E eu lá tinha um futuro? De acordo com as ranhuras, calosidades e cicatrizes na palma das mãos, ela garantia que sim. “Até os desgraçados podem sonhar”, confortava-me. Não sei o que pesava mais: o seu corpo checheno ou a minha consciência trêmula. Descobri o seu talento para enxergar longe, lá onde nenhum olho humano jamais havia enxergado, por meio de um panfleto afixado no para-brisa do meu automóvel. Devia ter vendido aquele traste quando podia. Aflito com os altos e baixos da vida cotidiana, acabei fisgado pelo papel de péssima qualidade que, contudo, prometia-me horrores; no bom sentido, é claro. Abre aspas:

O seu problema pode ser espiritual. Ou mundano. Não importa o dano. A gente resolve. Todos nós passamos por problemas na vida. Um parente que morre. Um tumor que nasce. Um bebê que não dorme. O vício do álcool, da masturbação e do voto útil. Não devemos deixar que coisas assim nos enfraqueçam. Devemos matar um leão por dia, antes que o medo nos devore. Para cada dilema existe uma solução. Se você está com problemas no amor, no trabalho, na saúde e no casamento; se você está abilolado com o estresse, a impotência sexual, a falta de inspiração para escrever um bom texto, um filho problemático, dívidas e dúvidas existenciais; enfim, se você está com aquela velha sensação de que tudo anda errado com você e que a metade do seu pão francês cai sempre com o lado da manteiga virado para baixo, erga a cabeça, não se desespere. Os seus problemas acabaram. Não brinque com a felicidade, muito menos, com a mediunidade de uma velha cigana. Volte a sorrir. Afaste do caminho tudo o que lhe perturba. Não me confunda com as outras. Meu nome é Dona Carmem, Rua dos Aflitos, 666, puxadinho-nos-fundos. Leio as mãos. Massageio egos. Faço consultas através dos búzios, cartas e tarô. Trabalho para o bem. Faço amarração. Trago o seu amor junto com os charutos de Havana. Não se preocupe. Não sou comunista. Não falsifico o tabaco. Perdeu o prazer de viver? Isso não é novidade pra gente. Procure ajuda agora mesmo. Você não vai se arrepender. Nós também não.

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