domingo, 10 de março de 2019

A dor é uma visita que não vai embora

A dor é uma visita que não vai embora

Pimba na
gorduchinha. Está valendo. Começa mais uma peleja entre Deus e o diabo. Que se
percam os piores. Assim é a vida. O jogo é de portas fechadas ao público.
Ninguém quer saber dos podres uns dos outros. Torcida desorganizada. Apenas os
rostos amarelados pelo tempo sorriem da estante. A falsidade é de meter medo. Ele
quer meter nela e joga com uma fome plural, contando sempre um par de bolas
entre as pernas. Parecem favas contadas. E são. Dá pra contar nos dedos fraturados
todas as vezes que ela apanhou. Não adianta insistir em jogadas aéreas, quem
perde sempre é a humanidade. Ela não quer mais saber de entrar no jogo; ele,
insiste. Para evitar um massacre, ela se arma na defesa, uma potranca na retranca,
um simulacro de amante. Parece anti-jogo. E é. Esquiva-se dele. Dribla-o. Alega
cansaço, indisposição, dor de cabeça, qualquer contusão que comprometa a sua
escalação para se deitar na cama. O jogo torna-se tenso. Na opinião dele, vale
tudo dentro das quatro linhas, ou melhor, dentro das quatro paredes. Ela queria
evaporar, sumir. Não adianta fugir, benzinho — ele avisa. Chupa, decrépita — decreta.
Manda quem pode, obedece quem tem juízo. Ela chupa em estalos crepitantes. Bola
pro mato, que o jogo é de campeonato. Arranhões. Pontapés. Cotoveladas. Puxões
do cabelo. Cama-de-gato. Isso juiz não vê. A vizinhança aumenta o volume da TV.
Ninguém ousa se meter em bola-dividida num embate tão catimbado entre marido e
mulher. Já faz tempo, ela pensa em tirar o time de campo. Preferiria mil vezes
ficar no banco de reservas, à espera de um milagre. Fazer corpo-mole não é tão
fácil quanto se imagina. O tempo não passa. Ele trespassa os corpos como uma
lança. Ela acredita que sofrer é eterno. A dor é uma visita que não vai embora.
Morrer seria uma solução. Ele provoca. Xinga. Cospe na cara. Enfia o dedo no cu.
É pura provocação. Que falta nos faz um replay da vida cotidiana. Nem mesmo um
arsenal de câmeras consegue captar que o fair play já era. A cancha vira um
clássico violento em La Bombonera. Ela tenta, desesperadamente, aplicar nele um
lençol manchado de sangue. O sangue é dela. Mete nela uma caneta. Aquilo é mais
do que a catimba argentina, do que a velha raça uruguaia. É uma fratura exposta
na tíbia da dignidade. Ela joga como time pequeno: fechadinha em si, acuada,
tomando porrada com a bunda assentada no azulejo. O gol é só uma questão de
tempo. Quem vai comemorar? O casal risonho que já embolorou de amores no
porta-retratos? Aquilo ali não é partida amistosa. É uma disputa acirrada
valendo três ou mais pontos no corpo dela, num estádio de coisas que mais
parece um caldeirão. Mesmo sem os apupos da torcida negligente, a pressão é
enorme. Ele pressiona as mãos contra a boca dela, forçando uma jogada perigosa.
Cala a boca, cadela! — rosna. Palavras amenas enforcam-se nas cordas silentes
do tempo. 45 minutos cravados e o amor se deteriora em campo. Que não haja
prorrogação. A regra é clara: é proibido ser feliz sozinha. O regulamento é
dele. Os números não mentem: ela perdeu mais um dente. A estatística demonstra
que ele é imbatível. Bate nela com um cabo de vassoura que mais parece a
bandeira de escanteio. O seu time é claramente superior. A pegada é viril. Ele
desce com tudo ao ataque. É agora ou nunca. Tapas na nuca. Vadia! — agita. Ela
já não sabe que sentimento sentir. Está zonza, perdida em campo. O gol é
questão de tempo. A bola insiste, sim, em entrar. Ele faz questão de penetrá-la
com bola-e-tudo. Não basta vencer. É preciso humilhar a mulher-da-sua-vida. Finalmente,
o êxtase: Gol. O placar continua implacável contra ela que chora,
compulsivamente. Ainda está viva. Guerreiro em campo, ele se deita de bruços na
arena, ofegante, bafejando uma bebida de qualidade tão deplorável quanto aquela
vida-a-dois. Não passaria incólume por um exame antidoping nem se fodesse com
ela durante várias temporadas seguidas. Na súmula, que é lida em voz alta, ele
reclama que ela já foi melhor em campo. Alquebrada, levanta, cambaleia, caminha
até o vestiário, deixando um rastro de sêmen-suor-e-sangue. Ouve-se barulho de água.
Será que tá chovendo? — a seu modo, ele raciocina. Terminado o tempo
regulamentar do banho, para fechar o massacre com chave de ouro, dá nela uma chave-de-braço,
derrubando-a sobre o tapete verde do quarto onde aplica sobre ela o Golden
Shower. O lance foi claramente irregular, só que não tinha mais ninguém ali olhando.
Fim de jogo.

O título da crônica é uma verso pinçado da canção Mulher Cigana, dos autores Pádua & Chaul.

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