A tenebrosa pauta de internação compulsória feminina na terra onde homens ditam as leis
Em uma época bem diferente da atual, nos idos dos anos 70, a sitcom
“Maude” surgia apresentando uma feminista liberal em seus contratempos
cotidianos. Ainda na primeira temporada, houve um episódio bastante polêmico,
onde a protagonista, interpretada pela saudosa Bea Arthur, enfrentou o tema do
aborto diante de uma América em um boom conservador. Era a primeira vez que um
assunto tão delicado seria abordado em TV aberta. Como já era esperado, a série
perdeu anunciantes e dezenas de afiliadas se recusaram a exibir o episódio.
Até então, as séries de comédia televisiva nos Estados Unidos tratavam sobre
temas leves, familiares, retratando de maneira inocente o dia a dia de seus
personagens. Apesar de toda a avalanche de críticas, “Maude” foi considerada um
grande sucesso. Com uma audácia vanguardista, além de pautas realistas e necessárias,
a série conquistou os americanos e representou um marco na quebra de paradigmas
para um programa de seu tempo.
“Maude” não foi a primeira série que retratou uma mulher como protagonista.
Tampouco desencadeou diretamente, que se saiba, algum movimento inspirado em
seus episódios. Mas o fato de ter uma mulher como universo central, com suas
lutas, devaneios, particularidades, condições biológicas e enfrentamentos da
vida, por si só já demonstra a sua importância como fonte de espelho: uma
mulher se enxergando — em uma série de sucesso — neste mundo historicamente
androcêntrico.
Não é preciso ir muito longe na história para saber que alguns aspectos das
pautas femininas, quando abordados, constituem um tabu incômodo para
determinados setores sociais. Ainda há pouco, o Código Penal apresentava como
sujeito passivo de crimes a “mulher honesta”, conceito que vem desde as Ordenações
Filipinas e que implicitamente sugeria a existência de uma “mulher desonesta”,
de comportamento moral condenável, com atitudes depravadas, em um meio-termo
entre a recatada e a prostituta. Já houve também, no Código Civil, a
possibilidade de anulação de casamento caso o marido descobrisse que sua então
esposa se casara já “deflorada”; e ainda a previsão penal da sedução de mulher
virgem, isso apenas a título de citação.
Na vida em um estado democrático, a ativa participação no Legislativo se
mostra assaz importante, quiçá fundamental. Aliás, pode-se dizer com bastante segurança
que a participação feminina nas decisões políticas que influenciarão diretamente
a vida das mulheres é demonstração cabal de uma maturidade legislativa. Porém, no
Brasil, somente 10% dos deputados federais são mulheres, segundo apontamento de
uma associação legislativa mundial denominada Inter-Parliamentary Union. Além
disso, há aproximadamente 15% de vereadoras com mandato ativo, de acordo com
dados eleitorais recentes. Apenas uma presidente foi eleita em toda a nossa
história. Só há duas mulheres dentre os 11 atuais Ministros do STF. Das 81
cadeiras disponíveis, 12 são ocupadas por senadoras.
Essas informações e dados são bastante elucidativos para retratar um
país onde as decisões de peso são tomadas majoritariamente por homens, desde
sempre. E também se mostram interessantes para uma reflexão acerca de alguns
posicionamentos legislativos controversos que surgem de tempos em tempos.
Afinal, seria o aborto um grande tabu caso os homens engravidassem? Essa
pergunta, que pode soar como bobagem, em realidade retrata que a gestão da
moral vigente — que acaba por conduzir as políticas públicas da nação — curiosamente
não passa pelo crivo de um de seus principais alvos. Isso deixa margem a
diversos questionamentos acerca da legitimidade e da coerência dessas mesmas
tomadas de decisão, ainda que haja respeito aos regramentos constitucional e
eleitoral.
Recentemente, um projeto de lei municipal de São Paulo virou tema de discussão
por indicar, em seus artigos, a necessidade de internação psiquiátrica
compulsória das mulheres atendidas que tivessem “propensão ao aborto
clandestino”. Desprezando os direitos personalíssimos e a dignidade humana, este
projeto demonstra uma ingerência absurda na questão das liberdades femininas,
sendo indicativo de mais um passo atrás nas conquistas públicas das mulheres em
questões que envolvem sua saúde. O autor do projeto, óbvio, é um homem. É mais
uma investida legislativa que busca o controle comportamental da mulher, partindo
de uma pessoa do sexo oposto.
Uma violência cometida é aceita em menor ou maior grau a depender de
qual cultura aparece no ápice de uma sociedade. No Brasil, os números
evidenciam que há uma marginalização feminina, independente do aspecto que se
analise: diferença salarial, inserção na política ou posições nas hierarquias
de poder. Não é possível que ocorram mudanças a curto prazo sem que haja uma
maior participação feminina como protagonista na seara política do país, já que
existe uma cultura de hegemonia masculina historicamente consolidada. Essa
exclusão nas decisões é também uma forma de violência das mais perigosas, por
ser silenciosa e camuflada em fato social.
Para que projetos como esse se tornem surreais a ponto de só existirem em mundos feéricos, a ocupação de espaços pelas mulheres se mostra indispensável. A conscientização da necessidade de assumir os poderes e rumos nacionais é o ponto chave de partida para que haja alterações nesse infeliz quadro de tutela masculina de pautas femininas. Sem esse enfrentamento, a mulher acaba se tornando a cidadã de segunda categoria e sem poder decisório que Simone de Beauvoir apontou em seu livro “O Segundo Sexo”, quando, em realidade, precisamos de protagonistas como a personagem de Bea Arthur em nossa política nacional e nos espelhos da vida, com extrema urgência. Como dito na letra da música da série, “that old compromisin’, enterprisin’, anything but tranquilizing, right on Maude”*.
* aquela velha comprometedora, empreendedora, tudo menos
tranquilizadora, é isso aí, Maude.
Questione-se: o aborto seria crime se o homem engravidasse? publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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