domingo, 12 de maio de 2019

Prometa à sua mãe que você vai se tornar um ser humano melhor

Prometa à sua mãe que você vai se tornar um ser humano melhor

Será preciso admitir um
pecado. Dois, na verdade. O primeiro foi ter induzido o meu filho a torcer por
um time de futebol. O segundo foi tê-lo ensinado a xingar. A primeira vez que
fomos juntos ao estádio ele sequer contava três anos. Lembro-me que chorou de pânico
quando pipocaram os fogos na entrada do Tessalonicenses em campo. Gastei dois
picolés e um saco de pipocas para acalmá-lo. A sorte foi ele ter adormecido no
meu colo antes de meia hora de jogo. Sorte maior foi o confronto terminar
zero-a-zero. O empate foi um bom resultado para mim. Nada de rede balançando.
Nada de foguetes espocando. Nada de choros incoercíveis.

A partir daí, retornamos
inúmeras vezes ao estádio. Com direito a vestirmos o manto sagrado e pintarmos
a cara de verde. E dá-lhe picolé. E dá-lhe pipoca. Até que o menino cresceu e assimilou
a paixão. Água mole em pedra dura, vocês sabem. Aprendeu também a espinafrar
sem a menor classe. Não estou me gabando por isso. Hoje, percebo que fui um mané.
Dava pra torcer sem truculência verbal. Eu achei que fazia parte do pacote
instruir o pimpolho a desopilar nas arquibancadas. Passados vinte anos, percebo
que a paixão dele pelo meu time, digo, pelo nosso time, mantém-se intacta. O
repertório de palavrões também, nas horas certas. No mais, apesar do meu
deslize como educador, ele acabou se tornando um adulto gentil que adora
futebol e nunca se meteu numa confusão por causa disso.

Tirei a mamãe do
hospital. Pneumonia aos 80. Perguntei o que ela gostaria de ganhar de presente
no Dia das Mães: ingressos para o Fábio Júnior, antibióticos ou uma nove
milímetros? Mamãe reprovou o chiste. “Essa culpa eu não carrego”, ela disse.
Era fã do Agnaldo Rayol e não tinha votado em Mojo Filter. Por meio de um
decreto, o Presidente acenava com a possibilidade de promover o acesso mais
liberal de crianças e adolescentes às escolas de tiro. Para tanto, ao invés da
autorização de um juiz, bastava a anuência dos pais para que a garotada puxasse
o gatilho, mirando sempre nas zonas mortais dos alvos fixos. Ela tossiu, fez
careta, cuspiu na grama e soltou um insulto cabeludo contra o mandatário maior
da nação. Devo ter aprendido os maus hábitos com ela. Ninguém é perfeito. Nem as
mães.

Ela odiava as filas de domingo.
Então, preferiu jantar comigo no sábado. O lugar eu escolhia. Optei por uma
churrascaria com boa acessibilidade para uma velhota em precárias condições
para deambular. Havia um atrativo extra. Naquela noite, alguém faria ali um
show em tributo a Chico Buarque, que era um artista que eu admirava desde que
eu tinha cabelos. Isso foi o meu pai quem ensinou: apreciar a boa música. A
comida estava ótima; o show, idem; a chuleta, nem lhes conto. Enquanto rolava o
som ao vivo, percebi a entrada de um jovem casal de namorados. Chegaram montados
num carrão imponente, cujo nome eu não consigo pronunciar, muito menos,
escrever aqui, por causa da escandalosa junção de consoantes. Os garçons são seres
abnegados que sabem de um tudo nessa vida. Era o Lopes quem me atendia e ele
comentou que um carro como aquele valia mais de 300. Achei o valor exorbitante,
porém, não ousei duvidar da assertiva de um garçom experimentado.

Estacionaram numa vaga
privilegiada, bem na porta do restaurante, destinada exclusivamente a idosos e
portadores de necessidades especiais. Babei pela namorada do cara logo de cara.
Foi cobiça à primeira vista. Era uma mulher mal-educada, mas, tinha sex appeal,
caminhava na ponta dos cascos. “Comporte-se. Você é um homem casado”, mamãe
advertiu. Para o meu azar, sentaram-se do nosso lado. O rapaz vestia a camisa
do Tessalonicenses. Pelo menos isso de positivo, além da namorada voluptuosa. Pensei
em alertá-lo que, provavelmente, não tinha percebido que a sua gata tava dando
mole, muito menos, a placa de sinalização com os dizeres em letras garrafais;
portanto, involuntariamente, ele estacionara a sua nave incrível numa vaga exclusiva
destinada a velhos e aleijados, ou melhor, a idosos e portadores de
necessidades especiais. Mamãe vetou a minha intromissão. Não valia a pena.
“Esses dois não têm compostura”, ela disse. Manda quem pode, obedece quem tem
juízo. Fiquei na minha. Será que mamãe foi garçonete antes de conhecer o meu pai?

Um cantinho, um violão. O
show tava ótimo. Pedi pro cara tocar “Gente humilde”. O casal pediu a conta,
sem muita gentileza. O boy irritou-se com o Lopes. Mandou chamar o gerente. Não
ia pagar o couvert artístico. Definitivamente, aquilo não era da minha conta,
mas, o rapaz comportava-se de uma forma tão rude, falava tão alto e com tal
arrogância, que eu não tive como ficar alheio ao imbróglio. Ele justificou que
não pagaria o couvert porque Chico Buarque era comunista, um traidor da pátria
e ele, cidadão de bem, não ia ser complacente com o rombo que Chico e os seus
cupinchas impuseram ao país, ao longo de 14 anos saqueando o erário. De tão
impensável, fiquei pasmo com a justificativa. O coitado do gerente argumentou
que Erivaldo Néli, veterano cantor de churrascarias, nunca tinha sido comunista
na vida, aliás, apesar de tudo, ele até cria em Deus, era evangélico e vivia exclusivamente
da música. Ou seja, o cachê vilipendiado faria falta.

O rapagão esbravejou que
não pagaria a droga do couvert nem por decreto presidencial. Para completar,
mandou tirar da conta a gorjeta do garçom também. Não era obrigado a pagar os
10% da taxa de serviço, tendo em vista que já tinha se chateado demais com aquela
situação. Pra finalizar, prometeu descarregar sua ira denunciando o
estabelecimento nas famigeradas redes sociais. Todo mundo percebeu que aquele
era um caso perdido. Ninguém mais se dispunha a ponderar com o jovem. O Lopes
queria mesmo era enfiar-lhe uma faca na barriga, como fizeram a Mojo Filter. Mas,
carne podre não se salga. O rapaz pagou a conta da maneira que quis pagar e saiu
arrastando a namorada pelas mãos. Era linda feito um troféu da Libertadores.

Decepcionado como um
goleiro que tomou um frango, o Lopes me serviu outro chope de colarinho alto. A
vida, às vezes, fica uma delícia. Atendendo aos pedidos de mamãe, Erivaldo Néli
cantou “Apesar de você”, como se lutasse por um prato de comida, cerrando os
olhinhos e fechando com chave-de-ouro esta crônica que nem ficou lá essas
coisas.

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