segunda-feira, 3 de junho de 2019

Um gaiato na Marcha da Maconha

Um gaiato na Marcha da Maconha

Encontrei o Mofo na
Marcha da Maconha. Ele e mais uns 300 desciam a ladeira com empolgação e
malemolência. Fiquei preso no cruzamento da Pegasus com a Caralho-de-asas, onde
os agentes de trânsito, vestidos de pincel atômico amarelo-limão, bloqueavam o
fluxo de automóveis para que o manifestantes seguissem logo o seu caminho e não
topassem com o pessoal da extrema-unção-de-direita que fazia, no mesmo dia e
horário, uma passeata em defesa do desmatamento da cava-funda amazônica e da
liberação imediata da caça ao comunistas.

Dentre tantos
jovens no meio da rua, deparei-me com um veterano gorducho, baixinho, albino,
de costeletas enormes.  “Pô, mas aquele
lá só pode ser o Mofo”, pensei. Era ele. Encostei o meu Volvo cor-de-vulva,
desci do possante e gritei. Ele tirou os óculos escuros, semicerrou as
pálpebras, confirmando uma miopia histórica. Reconheceu-me, imediatamente: o
mesmo cara de cara apalermada, o mesmo ar desagradável, a magreza cadavérica de
sempre.

Mofo tratou logo
de demarcar território desferindo um beijo técnico na boca carnuda de uma
garota incrível que estava ao seu lado, que ele me apresentou mais tarde como
sendo a sua terceira esposa, e não a filha caçula. Gesticulou de forma
atabalhoada, sinalizando com as mãos para que eu me juntasse ao grupo e pegasse
a rua descendo. Eu não estava com a menor vontade de mudar o país, muito menos,
de apoiar qualquer coisa diferente de cada um cuidar da sua vida. Andava pegando
ojeriza de gente nos últimos tempos. Por outro lado, eu não tinha mais nada pra
fazer naquela calorenta tarde de sexta-feira, a não ser morrer de tédio. Então,
dei de ombros, meti o boné na calva e corri para alcançar a multidão. Talvez
fosse proveitoso e divertido marchar com a juventude.

Fazia um tempo
danado que eu não via o Mofo. Quando garotos, estudamos juntos no Colégio
Marista, que a gente chamava, na época, de Colégio Nazista, graças à disciplina
rigorosa, porém, indispensável para manter sob rédeas curtas a legião de
encapetados que éramos. Abraçamo-nos com uma intimidade comovente. O Mofo
mantinha aquele inconfundível cheirinho de cecê-com-Palmolive. Estava troncho, parecia
combalido, manquitolava muito da perna esquerda. Perguntei o que tinha sucedido
e ele explicou que tinha se aposentado por invalidez. Fora atropelado, maldosamente,
pelas costas, por um boi sem coração, durante uma fiscalização de rotina da
agência rural, que obrigava os criadores de gado a vacinar os rebanhos contra a
raiva humana.

A densa névoa da
canabis sob o sol escaldante impregnava as minhas narinas e me embrulhava o
estômago. O casal disse que já tinha feito dois nenéns. Pela silhueta
voluptuosa, ela parecia nunca ter parido uma azeitona na vida, quem dirá, duas
crianças. Mofo explicou que, passadas quatro décadas desde os bancos escolares,
voltara a fumar maconha. “Uso recreativo, você sabe.” Eu disse que não sabia de
nada; de olho no recreio que parecia ser o quadril risonho da sua jovem
companheira, aparentemente uns 30 mais nova do que ele.

Mofo contemporizou
que a fase de catar cogumelos alucinógenos no campo, remexendo em bosta de
vaca, já tinha passado. O objetivo, hoje em dia, era fumar a erva para abrir as
“janelas da percepção da mente”, otimizando o processo criativo. O desgraçado
tinha voltado a escrever. Explicou que estava debruçado sobre o projeto de um novo
livro, um romance escatológico cujo título provisório era “Entre os monges do
mosteiro”. Achei aquilo, sim, uma verdadeira droga e fiquei com a impressão de
já ter lido coisa parecida na capa do livro de um antigo charlatão que tinha
três olhos e vendia pirâmides.

Não entendi quando
ele explicou que preferia fumar a coisa-toda longe das crianças para não dar mau
exemplo. Se a experiência era tão boa quanto dizia, nem precisava se esconder
da prole. Aquilo soou mais hipócrita do que preenchimento-para-sutiãs. Mofo contratou
um chaveiro, fez uma cópia clandestina da fechadura e, sempre que necessário, refugiava-se
para fumar no apartamento vizinho, que estava desocupado desde a morte
acidental dos seus proprietários, um casal de otários que fora devorado por
javalis ateus durante um safári no Zâmbia. Mesmo não acreditando em Deus, os
javalis estavam cobertos de razão.

Mofo comentou que se
sentia vazio como um filósofo sem causa e já tinha pensado, um monte de vezes,
em se atirar da sacada do prédio. “Cinquentões como a gente precisam suportar
firme o tranco. São demais os perigos dessa vida”, sem saber ao certo o que
dizer, eu recitei aquelas palavras no automático, mais raso do que cuspe no
asfalto. Eu salivava de náuseas. A esposa do Mofo comentou que o que eu tinha acabado
de falar tinha sido muito fofo da minha parte e que ela também adorava o Vinicius.
Fiquei sem entender a quem ela se referia.

“Quer dar uma
tragada, gracinha?”, ele ainda chamava a todos, indistintamente, homens ou
mulheres, de gracinha. Respondi que não, obrigado. Aliás, foi muita sorte minha
ter pego a passeata na reta final. Minha asma não combinava com nenhum tipo de
fumaça. Não demorou muito, chegamos à Praça dos Apressados, onde a balbúrdia já
tinha se instalado. Fomos recebidos pela polícia à spray de pimenta, acarajés
vencidos e balas-de-borracha, enquanto uma banda de reggae, que mais parecia
tocar de ouvido, tamanho o desencontro harmônico entre os seus integrantes, sapecava
toscos solos de guitarra.

Os microfones
foram desligados. O pau cantou. “Foge, meu velho! Salve-se!”, o Mofo berrou, deu
um tapão nas minhas costas e saiu correndo, lépido como uma lebre, entre os
canteiros malcuidados da prefeitura, puxando a sua gata pelas patas. Ela
parecia flutuar como num desenho animado. Seria uma alucinação? Eu, que era
cético como um javali, tive que me render ao milagre que acabava de se
materializar ali na minha frente. O Mofo, meu antigo colega de escola, um irreverente
e claudicante veterinário que quase comera capim pelas raízes ao ter a coluna
vertebral desmontada por um vertebrado de meia tonelada, parecia agora mais veloz
e saudável do que nunca. Pelo visto, quem pagou o pato foi o boi sem coração
que tinha virado churrasquinho.

Um gaiato na Marcha da Maconha publicado primeiro em https://www.revistabula.com



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