Andei por cerca de uma hora e meia sem muito destino, apenas contemplando as ruas quase desertas e as (poucas) pessoas, todas mascaradas, seguindo seu destino como bovinos correndo para o abatedouro. Ao voltar para casa, entrei e logo olhei de novo o celular: 30 por cento. O caça-palavras não precisava de rede para funcionar. Uma rodada, outra e mais outra.
Ela desviou ligeiramente seus olhinhos azuis da tela do computador e disse: “Papai, preciso ir ao banheiro”. Eu assenti com a cabeça, e ela foi.
Voltou. A professora nem soube da sua saída. Quando ela se sentou novamente em frente à tela, ouvia-se: “Fulana, feche o seu microfone, por favor. Ciclano, abra a sua câmara”.
Depois, a aula de música: ao som de uma música eletrônica, o professor batia um tambor e pedia aos alunos, do outro lado da tela, que também o fizessem, com colheres e panelas. A latência da rede não deixava que houvesse sincronia. O pá pá pá pá saía como plá plá plá pláts.
“Papai, preciso fazer um microconto sobre o coronavírus.” Eu disse: “Escreva sobre como sua vida mudou desde o início da quarentena, que você acordava às seis da manhã e agora às oito, que você não sai mais de casa…”
“Mas papai, são no máximo 150 caracteres.” Eu pensei: “Isso é aula de português ou de como usar o twitter?” Pouco depois, num momento de descontração, ela me mostrou sua tornozeleira de pano desgastada. “Papai, quando a gente for ao Hot Park eu compro outra.”
Quase pensei alto, mas o calafrio me impediu: “Será que um dia voltaremos ao Hot Park?”
De repente, o susto: a tela se enegreceu. Os sons da manhã, alternados entre cantos de pássaros e cortadores de grama, nunca pareceram tão evidentes. Um blackout geral parou tudo. “Ainda nos resta o 4G”, pensei, agarrando-me nervosamente àquela última conexão com o mundo.
Não adiantava. Tudo parado, o blackout era nacional. Empresas de telefonia ruíram e seus serviços não alcançavam as torres de transmissão.
Ela não se abalou. Feliz com o final forçado da aula, disse: “Papai, vou descer pra brincar lá embaixo”. Suando frio, tentei disfarçar meu nervosismo, balançando tão discretamente a cabeça em concordância que ela repetiu: “Pode, papai?”. “Pode sim, princesa, vai brincar.”
Olhei o nível da bateria do laptop no canto inferior direito da tela. “Pra quê?”, pensei. “Não adianta nada terminar o trabalho se depois não tem como enviar”.
Desci também. Num impulso instintivo, deitei-me no sofá e saquei o controle remoto da TV. Só depois de apertar três vezes o liga/desliga é que me dei conta: sem energia elétrica, sem televisão.
Saí. Fui buscar um ar. Andando pelas ruas, lembrei-me do pequeno mercado perto de casa. No meio do caminho, voltei para pegar a máscara, o que me rendeu pelo menos 350 metros a mais de caminhada. Pedi duas Heinekens, enquanto pegava a carteira no bolso. Atabalhoado pela tensão, deixei-a cair no chão.
“Senhor, não estamos passando cartão, por causa do blackout.”
Quase desesperado, abri o compartimento de cédulas. Havia dois reais. Mal dava para pagar o pacote de amendoim.
Saí de lá meio correndo, meio andando, com o sol na cara e o amendoim no bolso. Olhei o celular: o que me espantava é que procurei primeiro o nível de bateria, e não as horas.
Andei por cerca de uma hora e meia sem muito destino, apenas contemplando as ruas quase desertas e as (poucas) pessoas, todas mascaradas, seguindo seu destino como bovinos correndo para o abatedouro.
Ao voltar para casa, entrei e logo olhei de novo o celular: 30 por cento. O caça-palavras não precisava de rede para funcionar. Uma rodada, outra e mais outra. O bom era que, sem rede, também não tinha propaganda.
Dez por cento. Vou à cozinha. No caminho, ela me olha com seus olhinhos azuis, agora meio acinzentados pela sombra da cortina fechada: “Papai, pega um toddynho pra mim.” Foi bom, porque me desviou de verter a dose de uísque que me propunha a tomar, pra ver se esquecia do nível de bateria.
Não teve jeito: entregue o achocolatado para a criança, tirei novamente o celular do bolso. Agora era só uma tela preta, sem luz, sem vida. Monstruosa.
Corri para cima. Abri a tela do laptop. O monstro estava em sua tela também.
Já um pouco sem ar, um pouco sem esperança, ouvi o barulho do telefone sem fio, misturado ao bipe do ar-condicionado, todos anunciando a volta da energia. Mais tarde o operador do sistema pediria desculpas pela falha humana que ocasionara a queda generalizada.
Quase chorando, constatei no site que o Hot Park continuava fechado por tempo indeterminado. Quando ela chegou, disse: “Olha, papai, que lindo o tobogã”. Dei-lhe um abraço apertado. Meio inconsciente, eu ia passando as fotos do parque para ela ver, enquanto apertava fortemente o cartão de crédito com a outra mão. Minha vida já estava meio completa novamente.
O monstro na tela — como treinar crianças para a vida remota publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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