domingo, 13 de janeiro de 2019

Não confio em médicos que nunca examinam

Não confio em médicos que nunca examinam

Bom mesmo era o doutor Pecker que colocava as mãos na clientela sem pressa, malícia e asco. Sobretudo, aceitava o pagamento em bandas-de-leitoa. Decorava bulas, sonetos e até “O Navio Negreiro”, de Castro Alves. Tinha cultura e boa memória. Para tratar pedras nos rins, quebrava os rigorosos protocolos científicos ao receitar os caminhos tortuosos de Drummond. Para a contenção dos gêiseres fertilizantes e dos fluidos contaminados por intrépidos treponemas que espocavam das varas, instruía o uso de camisinhas-de-força. Para evitar o dissabor de um neném não planejado, servia-se aos casais um tira-gosto: azeitona; sim, uma azeitona estrategicamente alocada entre os joelhos da mulher amada. Era batata, ou melhor, era azeitona; desde que não se deixasse cair o caroço na cama. Aliás, azeite alentejano, para amenizar a secura vaginal, fazia parte da régia estratégia para escorregar-enguia-na-loca e temperar o relacionamento durante os bravos verões da menopausa. Para corrimento, pausa. Para os dias de TPM, recomendava guardar melhor distância. Para frieza sexual, receitava jeitinho mais cobertor de orelha. Para ejaculação precoce, indicava manteiga-de-tartaruga e punhetas com a mão esquerda. Macetes para inzonar. Para garantir plena eficácia contraceptiva, caçava gametas com a mesma gana de quem caçava confusão; instalava, ele próprio, fraco e mirradinho, com o artifício de binóculos e de um cilibrim, minúsculas arapucas e umas tais micro-ratoeiras importadas da França (tinham ratos de sobra em Paris naquela época) para surpreender o verter das picas e capturar espermatozoides no arcabouço da cratera vaginal. Havia uma compreensível, justificável e natural falta de luz no fim do túnel. Ali, deitado em berço esplêndido, jazia boquiaberto um colo uterino, prestes a engolir novas expectativas de vida. A mãe-do-corpo, como sempre acontecia, urrava. Mulher sofria e sofre. Não restava dúvida ao médico ateu de que as fêmeas da espécie tinham levado imensa desvantagem durante o ato divino da criação. Padecia também o descrente doutor desses tipos de incongruências filosóficas. Para retesar o desatino da frouxidão crônico-involuntária dos esfíncteres e dos orifícios, deveria o moribundo piscá-los em salvas de trinta vezes, a intervalos de oito horas. Para a impotência sexual masculina, ovos-de-pata mais os famosos exercícios de levitação do professor Karnal. Para dor de veado, tinturas de arco-íris. Para frieira, beirada de rede. Para batedeiras no peito, repiques com o dedo indicador num portal de madeira para ensinar o coração a bater no ritmo correto. Para as dúvidas existencialistas, listas de exercícios de matemática. Para transtornos bipolares, uma terceira opinião. Para moléstias mentais do tipo desespero de causa e loucura absoluta, cadeiras elétricas de frente ao mar. Amar. Carecia armar o espírito, no qual ele não cria, com aquelas cálidas cápsulas de claves-de-sol. Mais incongruências. O tempo passou. Há roupa no varal e doses homeopáticas de devaneio nesse texto em tributo à medicina humanizada. Espero ser bem compreendido. Adveio tecnologia avançada com o uso trivial de caríssimas máquinas-de-tirar-dúvidas nas quais se entra numa extremidade, enquanto o laudo sai noutra. Ganha-se de um lado, perde-se de outro. Eis a vida. Já não se fazem mais médicos como o desprovido doutor Pecker que sumiu engolido por sucuri. Instruído por Hipócrates, arrancava bala à grito, mandava veia parar de sangrar e cochichava coisas que ninguém entendia enquanto operava milagres num singelíssimo hospital no interior do Brasil. Se eu não soubesse da sua flauta de fé, poderia jurar que se aconselhasse com o próprio Deus enquanto desembaraçava tripas.

Não confio em médicos que nunca examinam publicado primeiro em https://www.revistabula.com



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