O mundo subtraíra-se das cores. Tudo era cinza e para-sempre-blue. As flores tinham perdido toda e qualquer fragrância. Os pássaros, coitadinhos, emudeceram. Os arco-íris desenhavam-se no céu tristonho em nuanças de branco-e-preto. As línguas tinham cegado para o lado doce da vida. “La dolce vita” nada mais era do que um filme velho. Os tatos estavam quase todos amortecidos. Os sobreviventes só se permitiam tocar em casos de extrema necessidade, como a luta corporal, o assassinato-à-unha e a cópula. Fazia tempo, ninguém mais fazia amor. Fornicava-se. Desopilava-se. Ao menor sinal de vida pulsando nas entranhas maternas, os embriões distraídos da calamidade vigente naquele mundo extra-útero eram sumariamente cauterizados pelas clavas flamejantes manipuladas por freiras dissidentes da antiga igreja. Para a espécie humana, já não valia mais a pena crescer e se multiplicar. O projeto do Criador para o homem tinha sucumbido. Quem morria com a intenção sumária de se ver livre da arbitrariedade e das atrocidades terrenas, ressuscitava ao terceiro dia e acorria primeiro a tirar satisfações com o Altíssimo, porém, só se deparava com uma impecável túnica branca dependurada sobre o trono celestial e uma placa com os dizeres “Saí para comprar cigarros”.
Ora, Deus não fuma e nunca fumou. Não existe e nunca existiram esquinas no céu. Aos farrapos humanos, as desculpas esfarrapadas. Tão obsoletos quanto a caridade, os livros passaram a ser usados para assar batatas. Vigorava um desprezo descomunal e irreversível pelo arcabouço intelectual das pessoas. Sobrevivia-se das migalhas ancestrais. Greta e Jerome, por exemplo, conheceram-se numa rinha de cachorros. Naquele dia, um baskerville tinha acabado de estraçalhar um cão-andaluz. A plateia apupava. O antigo teatro dos padres prestava-se agora como uma arena para a disputa mortal entre canídeos enfurecidos, avidamente estumados à raiva absoluta pelos mentores da jogatina brutal. Setenta por cento da população estava desempregada; 20% tinha se matado. De tal sorte que o azar era de quem tinha sobrevivido no caos, aquela sina do “Quem viver chorará”. Restava muita gente malina por ali, cada qual com uma arma na cintura e o seu próprio cilindro de gás. A atmosfera andava tóxica demais, irrespirável desde que levas inteiras de toras e touceiras foram convertidas pelos tratores em detratores campos de capim não comestível.
Sua bolsa seminal pulsava calada dentro da pélvis. Ele comia a moça por um dos olhos. O outro já tinha secado de vergonha em ver tantas agruras. Greta tinha os sovacos peludos, as unhas pintadas com piche e os cabelos desgrenhados que cheiravam a rabuja. Houve uma atração física instantânea entre eles. Eram parte daquela legião de feras bípedes e estavam propensos a desopilar também. Aquele estilo primitivo de vida não teria mais cura, a não ser que um asteroide os aniquilasse como fizera aos dinossauros, um fenômeno que, lamentavelmente, não estava previsto pela ciência morta. Acertaram de cambiar microrganismos na sua morada. Os prêmios aos apostadores da rinha eram pagos com frações de água potável. Greta fora agraciada com dez garrafinhas pet. Nenhum cidadão possuía automóveis. Só o governo operava jipes, caminhões e tanques de guerra, a maioria deles manobrados para atropelar os miseráveis famintos e os militantes insurgentes contra a desordem institucional. Colocaram a carga preciosa de H2O dentro de um carrinho de supermercado e desceram incontáveis quadras até o endereço onde ela vivia, um prédio abandonado que antes abrigara uma brigada estudantil da faculdade de ciências ocultas. Ninguém possuía mais um patrimônio. Pareciam possuídos. Dentro dos apartamentos morava uma família em cada quarto, uma mistura lasciva e promíscua. Num deles, um sujeito de hábitos estranhos contraíra núpcias com um porco duroc que pesava mais de dez arrobas. Era pesado viver, companheiros, acreditem.
A situação no planeta andava abominável desde que os pesquisadores-que-pesquisavam-à-exaustão descobriram, tarde demais, diga-se de passagem, que os magnatas da internet tinham desenvolvido, ocultamente, a par das fronteiras invisíveis da bioética, uns tais feixes luminosos imperceptíveis que eram disparados incontáveis vezes por minuto através das telas dos smartphones, adentrando as retinas dos usuários para, enfim, violar áreas específicas do cérebro humano; primeiro, descerebrando o tecido nervoso são do indivíduo; depois, ativando núcleos, para-núcleos, dobras e reentrâncias secundárias dentro da imensurável massa encefálica, sobretudo, as zonas responsáveis pela maldade.
Fazia muito tempo, era cada um por si e Deus a fumar. A humanidade tinha atingido o grau máximo de perversidade. Tanto assim que a próxima atração da rinha de cães seria o duelo, até a morte, de crianças entre sete e doze anos. Imperava a pior espécie de resiliência possível ao ser humano. Tudo isso porque ninguém mais se indignava com atrocidade nenhuma. Ninguém mais chorava por dó ou por desespero de causa. Só se vertiam lágrimas por conta de alguma espécie de dor física lancinante sofrida na própria carne, tipo uma mordida, tipo uma paulada, tipo um esfaqueamento. No final das contas, as almas já tinham se dissipado. As que não tinham se dissipado, estavam anestesiadas para sempre. Isso explicava a suposta fuga do Pai do Paraíso.
O dia em que Deus saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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