domingo, 14 de julho de 2019

Aprendi a deixar doer. A morte é uma saudade que não tem remédio

Aprendi a deixar doer. A morte é uma saudade que não tem remédio

Era o velório da minha tia, irmã mais
velha da minha mãe. Mamãe chorava sua dor, cheguei ao seu lado e segurei sua
mão. “Perdi minha segunda mãe”, ela disse. Perdi minha segunda avó materna,
pensei. Depois que a vovó se foi, minha tia tomou o lugar da matriarca. Seu coração
era um salão de festas, ela não media esforços para reunir a família.

Toda vez que eu a encontrava, já nos
últimos anos de sua vida, ela me pedia para visitá-la mais vezes. Eu vou, tia.
Passava o tempo, nem sempre eu ia. Vivia na correria da rotina. Ela mandava
presente e rosa do jardim. Eu fazia a visita, a gente ria, se beijava e
brindava com vinho ou café. Minha tia também era médica, e seus pacientes a
adoravam. Ela me ensinou a importância de não perdermos a humanidade em nossos
atendimentos. Tínhamos outra coisa em comum: amávamos pintar quadros a tinta
óleo. Assim, em nossos encontros, falávamos sobre a medicina, a pintura e a
vida.

A morte da minha tia atropelou a
família. Por mais que morrer seja a única certeza que temos na vida, ainda
sofremos a cada partida. Tenho minha fé e minha religião, tento entender que a
morte não é o fim; mesmo assim, ela dói em mim. A morte me traz o passado, e
com ele, meus arrependimentos (as visitas que não fiz e os “eu te amo” que não
falei). A morte também me entrega o futuro, com toda sua ausência.

Preciso enfrentar o medo. O medo da
espera e do fim; do ceticismo e da solidão. Para encarar esses dias ruins,
tranco-me em minha alma. É como se nela tivesse uma casinha bem simples, de uma
única janela. Fico sozinha, esquecida, observando a vida passar. Acordo, em meus
dias nublados, para observar a existência lá fora: tudo permanece igual, tal como
disse Fernando Pessoa: “à hora em que o dia raia, em que a luz estremece a
erguer-se, todos os lugares são o mesmo lugar”.

Entendo que, quando meu mundo está
triste, tudo continua igual. No ruído da multidão, o viúvo continua a chorar
baixinho; o carpinteiro, a pregar a madeira; o menino, a jogar a bola. Da
janela da minha alma, compreendo que a vida não espera a dor de ninguém ir embora
— bem que seria bom poder parar o tempo!

Sonho com uma espécie de paz
incompreendida, uma lucidez alegre. Mas, por enquanto, essa ilusão é um desejo
distante. Rubem Alves tinha razão: “a morte é uma saudade sem remédio”. Estremeço.
O luto me revela: sou fraca, sou forte. Posso fugir, posso ficar. Quero
atravessar grandes mares, quero os pés na areia. Quero pintar poesia. Quero os
sentidos, os pensamentos, as palavras. Quero entender Pessoa: “que cada momento
não passa nunca, que a flor colhida fica sempre na haste, que o beijo dado é
eterno, que na essência e universo das coisas, tudo é alegria e sol; e só no
erro e no olhar há dor e dúvida e sombra”.

Olho o passado para chegar ao futuro
(assim, sobrevivo ao presente). Lembro de quando brindávamos nas festas e nos
dias comuns, quando colhíamos as rosas do jardim da casa, quando cortávamos o
bolo de fubá no lanche da tarde. Quando abríamos o ovo de Páscoa e quando
esperávamos pelo Natal. Quando contávamos nossas histórias ao redor da mesa,
aos domingo, na comunhão em família.

Agora, tenho menos medo da morte. Deixo-a
entrar por minha janela, e, juntas, choramos a dor da saudade…

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