A vida nada mais é do que a morte que vai ficando, que vai ficando, que vai ficando. Num asilo, perguntaram a um homem velho, um homem muito velho mesmo, se ele precisava de algo. Respondeu assim: “Vida. Eu preciso de um pouco mais de vida”. Todos os outros idosos que estavam presentes ao banho de sol riram do chiste.
Marie tinha 20 anos quando morreu afogada numa daquelas cachoeiras fotogênicas de Alto Paraíso. Saiu uma foto dela na capa dos principais jornais: “Garota tragada por turbilhão de lágrimas”. Restaram na estante da sala de estar as fotos, os troféus e as medalhas de uma exímia nadadora, uma campeã da natação. “Parecia um peixinho quando caía na piscina”, era o que todo mundo dizia.
Ninguém nunca sabe de nada. Quanta ironia. Quanto cinismo do destino. Ter se afogado não foi uma cruel coincidência. Era o universo conspirando em desfavor da humanidade. De tão jovem, Marie desconhecia que viver era um risco incalculável. Quem tem medo já perdeu a juventude. Eis a maturidade. Contudo, com a natureza selvagem não se brinca. Ela sucumbiu aos segredos da tromba d’água. Isso que é dose para elefante. Não tinha céu estrelado que mitigasse tamanha sanha. Os bombeiros gastaram dois dias e duas noites mergulhando, pelejando, chorando em busca de encontrar o corpo alvo, suave, bonito, adornado com peixinhos beijadores, que ficou engastado numa galhada, caladinho como as pedras que cortavam o rio, três quilômetros abaixo do local do acidente.
Prozac acima de tudo. Deus acima de todos. Desde o fatídico dia em que Antônia enterrou a filha, claudicou por um inferno astral que parecia definitivo. Esperava-se que o tempo cuidasse de tudo da melhor maneira possível. Não foi bem isso o que sucedeu. Remoía a tragédia sem encontrar uma solução palatável para os fatos. Que fogo-fátuo é o amor. Combustão espontânea. A maioria não assume, mas, havia, sim, uma filha predileta dentre a prole de cinco rebentos; o seu nome era Marie, a menina do meio, uma palhaça que fazia a casa mijar de rir.
Madrugadas a dentro, Antônia miava de dor. Encerrou de comer comida para só se sustentar de água e de saudade de um passado contente, uma união inconteste que prometia durar para sempre. Porém, fatidicamente, é o que se diz, amor não enche a barriga de ninguém. Antônia definhou como uma avenca sem água. Não havia de se aventar que faltasse Deus no coração dela. Tinha uma fé irritante, uma devoção diuturna pelas causas da igreja. Era frequentadora assídua da paróquia do bairro e demonstrava intimidade com os pecados, com as penitências e com os santos da igreja católica, dentre outros elementos fenomenais do imaginário cristão.
Nas contas de Antônia, a vida tinha parado, inexoravelmente, no dia em que o telefone tocou com uma ligação importantíssima de Brasília. “Sentimos muitíssimo informar que a sua filha sofreu um grave acidente, etecetara, etecetara…”. Na maior parte do tempo, havia um séquito de gente comendo com ela num mesmo prato o sal amargo da morte estúpida. É duro enterrar um jovem. É duro enterrar um filho. “Podia ter sido com a gente. Ai, meu Deus, pra que tanta dor?.”
Ninguém via Antônia chorar. Gemia como o vento zunindo nas gretas. Definhava a passos largos. Desistia rápido como as chuvas de verão. Ia-se como vão os sonhos intangíveis da juventude. Guardava o choro seco do estio de felicidade. Perdeu o apetite. Perdeu o rumo de seguir vivendo sem a presença alegre da filha preferida. Emagreceu e não foi por vaidade. Antônia minguou com as horas, triste, nocauteada pelos desígnios divinos, desencantada como um poeta que perde a inspiração.
No documento oficial do Estado, no rodapé do atestado de óbito, ia escrito em letras garrafais que, a tantos dias do mês tal do ano vigente, fulana de tal tinha falecido por falência de múltiplos órgãos. No frigir dos ovos, o mundo estava mesmo era subtraído de dor. Um miserável a menos reclamando do destino. Antônia, mãe de Marie, tinha morrido de tristeza.
Será mesmo possível que se morra de tristeza? publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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