Hoje, faço anos.
Quando eu nasci, a canção mais tocada nas rádios era “Help”, dos Beatles. O
Brasil vivia uma ditadura militar implacável. A trilha sonora não podia ter
sido mais adequada. Virginianos sofrem, podem crer. Eu, que não creio em
praticamente nada, não sei por que cargas d’água ponho fé em horóscopo. Não
visto cuecas de uma cor particular que me garanta sorte. Simpatia: zero. O
calor da tarde não é obra do azar, mas, pura consequência de tantas
inconsequências perpetradas pelo homem contra a natureza. Minha natureza
difícil anda percebendo o clima intolerável entre as pessoas. Uns caras que nem
conheço votaram em mim como o escritor mais pessimista dos últimos tempos. Ainda
bem que não escrevo para fazer amizades. O fato concreto é que estamos em pleno
inverno. Isso, sim, é uma piada meteorológica. O céu anda feio, sujo de fumaça,
sem inspiração. Algum infeliz ateou fogo na mata. Morre-se mais pela boca do
que pelos açoites do tempo que passa apressado sobre o meu corpo e, sobretudo,
sobre os meus pensamentos e os meus planos futuros. Passarinhos tomam banho na
bacia d’água que coloquei no jardim. Estão igualmente acabrunhados com o calor
medonho. Atiro objetos para Lola ir buscar no gramado. Antes de viajar, Julia
instruiu que eu brincasse com a cadelinha à exaustão. Os cães sentem saudades,
foi o que ela disse, antes de desaparecer na curva da fila de embarque. Jogo a
baleia azul o mais longe que consigo e Lola parte em disparada. Volta com o
bichinho de borracha entre as mandíbulas de dentes pontiagudos, inofensivos.
Nem tanto. Mesmo tonto, percebo que falta um pedaço considerável da cauda.
Falta pouco para anoitecer. Repito o gesto de lançar o brinquedinho que, pasmem,
assovia quando se morde nele. Elas são mesmo uma graça: Lola e a baleia azul
cantante que falta um pedaço da barbatana. Sinto câimbras no ombro. Lola, ao
contrário, parece incansável. É uma cadela jovem, alegre, vívida. Confia em
mim, apesar de eu ter pago, regiamente, para que uma veterinária elegante lhe
arrancasse o útero com uma competência à toda prova. Prove que pode confiar em
mim de novo, filho-da-mãe. Os cachorros também maquinam. Durou um mês até que
me perdoasse, até que saísse do seu ninho de meias, trecos e cacarecos
encontrados no assoalho da casa, para voltar a conviver com indisfarçável
alegria, como se a mutilação operatória fosse um pedido dela para aplacar as
prenhezes psicológicas. Os cães perdoam. Até os cães perdoam. Por que certas pessoas,
mesmo as não castradas, se afeiçoam tanto ao rancor? Simplesmente, não entendo
isso. Tudo é relativo. Lola sente a baixíssima humidade relativa do ar e se
deita sobre a cerâmica fresquinha, arfando. Coloca a depauperada baleia azul,
propositadamente, bem na frente do focinho. Vigília silenciosa. Parece, enfim,
exausta, após tanta correria em prol da baleia amiga, de barbatana carcomida e
que emite um som agudo, estridente, quando se morde nela. Fitando-me com os
olhinhos humildes, Lola parece curiosa em saber quem tem jogado baleias azuis
no meu quintal, para que eu corra atrás delas. Uma carreira? Um credo? Um amor
viciante? Filhos? É osso. Dúvidas caninas roem-me por dentro. Ofereço-lhe água
fresca. Faço-lhe cafunés nas orelhinhas macias. Mais uma vez, recomendações de
Julia: durante a minha ausência nessa casa, não se esqueça de fazer carinhos
nela, por favor. Logo mais, à noite, estarei com amigos, parentes e a minha
gata, tomando leitinho-com-rum nalguma bodega aconchegante da cidade. Os anos
se passaram e ainda me constranjo com aconchegos. Não nasci para festividades
de aniversário. O ar seco pinica os meus olhos. A fuligem do mato queimado
sufoca os meus pensamentos. A moça voluptuosa que prevê o tempo num telejornal
alerta que não há previsão de chuva para os próximos dias. Julia, é certo,
voltará passados dois anos. Lola se levanta, quer brincar mais um pouco. Não
sei bem o que pensar a respeito do meu aniversário, da maturidade que chegou
tarde demais e das baleias azuis que movimentaram e continuam movimentando o
meu cotidiano. Amanhã, comemora-se o Dia da Árvore, data que abre,
oficialmente, a chegada da primavera e do signo de libra, cujo símbolo é uma
balança. É preciso ter equilíbrio para não pirar. O meu nascimento, quem diria,
foi um acaso deveras acertado. Eis que completo mais um ano de vida a perseguir
as minhas próprias baleias azuis, que perderam a cauda, e que gemem sempre que
eu mordo nelas, com a requerida dose de equilíbrio e de empolgação, como se eu
fosse um libriano, como se eu fosse um cão.
Cuida bem de quem te ajuda a colocar os pés de volta ao chão publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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