A Carlos Drummond de Andrade
O
moço que se matou, dizendo por escrito que era um “desajustado social”, na
verdade matou-se porque se deixou convencer de que não existe na vida e no
mundo lugar para a dor. Matou-se porque lhe disseram, com aquele vocábulo, e
com a filosofia maldita que por trás dele se esconde, que o mundo não concede
matrícula aos que choram. Insinuaram-lhe que tudo se reajusta, e acrescentaram
que só depois dessa reajustagem pode uma alma se inserir. Ora, o moço viu que a
primeira parte da história era falsa, porque nem tudo se reajusta, mas
continuou a crer na segunda; e então, suicidou-se. Suicidou-se porque era um
desajustado. Suicidou-se porque era uma excrescência na criação. Uma verruga no
universo.
Ah!
como eu quereria gritar aos ouvidos dos moços que há no mundo e na vida lugar
para a dor!
É
claro que existe o problema da inserção. Ninguém nega que o dinamismo iníquo da
sociedade tende a deixar à margem os fracos, os tímidos, os perturbados.
Ninguém nega que o homem deva aprender a se inserir na efervescente convivência
e deva lutar pela defesa de seu lugar. Tudo isso existe, e já é bastante
trágico para que ainda venham dilatar o campo do problema com essa ideia
infernal de que só os felizes estão inseridos e que todas as mágoas, todas as
feridas, todas as tristezas são sinais de excomunhão.
Moços!
há na vida e no mundo um lugar, um enorme lugar para a dor. Há lugar para o
pobre; para o doente; para o obscuro; para o aleijado; para o perseguido.
Eu
li o comovente artigo de Carlos Drummond sobre o outro menino, apaixonado que
um dia, que teve pressa de matar-se. Li, e creio ter compreendido a pungente aflição
daquela enorme alma de poeta quando lhe passa pela mente que o menino poderia
salvar-se se alguém, naquelas poucas horas de um prelúdio de dor, o tomasse
pela mão, o levasse à praia, e risse com ele nas espumas do mar. Raramente
senti tamanha afinidade, tamanha simpatia, como nesse artigo escrito ele todo
com um nó na garganta; e lido, ele todo, no outro lado da cidade, em outra
situação, em outros sentimentos, mas com o mesmo fundamental nó na garganta.
Mas
discordo do poeta no remédio. Talvez desse bom resultado o mergulho na onda
fria que lhe desatasse no peito as molas da infância. Mas cá fora, ali mesmo na
praia, esta a Teoria à espera do menino. A teoria de que não há no mundo e na
vida lugar para a dor. Muito mais do que a mocinha do bloco, sem culpa maior do
que alguma faceirice, quem deseja imolar os moços de vinte anos é essa Teoria
de implacável otimismo que exige para a vida, para o ingresso na vida,
condições higiênicas e psicotécnicas mais rigorosas do que as que se exigem
para os aviadores. A Teoria diz ao moço que vá tratar-se e volte depois se quer
emprego no mundo. A Teoria dá um prazo para que o candidato se torne
decentemente feliz. Feliz no padrão, de G para cima. Feliz no sexo. Feliz nos
nervos. Feliz em tudo. Decentemente feliz.
Bem
sei que há os desesperos precoces que ignoram as coisas boas de que a vida é
farta. Será bom dizer-lhes que existem muitos amores, que haverá muitos outros
blocos e muitas, muitíssimas outras mocinhas amáveis. Que o céu é azul, que há
prados cheios de flores, e que é bom mergulhar na onda fria, com os olhos
abertos, para ver um mundo novo fundido em esmeralda. Que é bom deitar na
grama, que é bom meter o pé no estribo, em manhãzinha brumosa, manhã de roça,
sentindo o cheiro do couro e o cheiro forte do cavalo; que é bom andar de mãos
dadas em rua de bairro antigo ao cair da noite confidencial e casamenteira; que
é bom pisar um tombadilho molhado e sonhar com cidades de lenda; e que é bom
ficar à toa, numa varanda domingueira, seguindo os passos de um inseto de rubis
e safiras, que passeia num velho muro a sua microscópica riqueza; que é bom
respirar; que é bom viver.
Mas
não basta, ó poeta, mostrar às almas aflitas a doçura das relvas, a frescura
das ondas, e a ternura dos regaços de amor. Porque isto não é toda a verdade da
vida. E é preciso ser verdadeiro. É preciso, sempre, ser verdadeiro. Em toda a
extensão. Em toda a profundidade. Nos dois hemisférios de luz e sombras da
verdade.
O
que é preciso dizer, a esses moços que por tão pouco desesperam, é que existe
uma dignidade no centro mesmo da dor; que a dor não excomunga; que a dor já foi
santificada para que possa santificar. O que é preciso, ó poeta de alma grande,
é abrir velas ao mar, e descobrir a verdadeira extensão do mundo e da vida.
Ah! essa história maravilhosa, que a mim me contaram, como eu gostaria de lhe contar, longamente! longamente!
Publicado no livro “Dez Anos”, Editora Agir.
Os meninos se matam publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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