A primeira impressão que se tem do livro
“Adeus, Farewell — O Espião Russo Que Mudou o Curso da História” (Record, 446
páginas, tradução de André Telles) é que seus autores, o russo Sergueï Kostine
e o francês Éric Raynaud, superlativam a importância do espião e engenheiro
soviético Vladimir Vetrov (1932-1985) na derrubada do império da União
Soviética. Entretanto, uma leitura atenta, sobretudo quando se verifica como os
Estados Unidos trabalharam com as informações de Vetrov, sugere a conclusão de
que o seu trabalho foi devastador. “Não é impossível pensar que, sem a ação
solitária de Farewell, a perestroika e o fim da guerra fria poderiam muito bem
ter acontecido dez, quinze ou vinte anos mais tarde”, avaliam Kostine e
Raynaud. A primeira versão da pesquisa de Kostine (sem a participação de
Raynaud) rendeu o filme “O Caso Farewell” (“L’Affaire Farewell”), com Diane
Kruger e Willem Dafoe e dirigido por Christian Carion.
O livro tem histórias paralelas
impressionantes, por exemplo sobre a escalada de um espião no KGB — o nepotismo
predominava na era Brejnev —, mas, num comentário breve, vou me circunscrever à
exposição central de Kostine e Raynaud. A história de Vetrov começa a ganhar
corpo em 1965, quando é indicado para um cargo na embaixada soviética na França.
Aos 33 anos, foi para a terra de Flaubert e Proust como representante do
Ministério do Exterior, embora sua função real fosse espionar e obter segredos
científico-tecnológicos do governo e das empresas franceses. Sua mulher, a
belíssima Svetlana, o acompanhou.
Aos poucos, com sua energia esfuziante,
Vetrov conseguiu atrair aliados ideológicos ou interessados em dinheiro para a
causa comunista, como o engenheiro Pierre Bourdiol, que entregava segredos da
empresa Thomson-CSF para a espionagem soviética. O executivo Jacques Prévost,
alto executivo da Thomson-CSF, aproximou-se do homem do KGB, não para dar-lhe
informações tecnológicas, e sim para negociar com a União Soviética e, também,
obter informações. Prévost era ligado à DST, a contraespionagem francesa.
Uma luz “acendeu-se” no cérebro de Prévost
ao escutar Vetrov fazendo críticas cerradas aos seus superiores, ao Partido
Comunista e ao sistema da União Soviética. Isso no fim da década de 1960.
Quando o KGB decidiu repatriá-lo, Vetrov sentiu-se mal e, numa conversa com
Prévost, chorou. O espião contou para Svetlana que Prévost havia lhe “proposto
uma defecção” e o aproximou de Pierre, ou Jean-Paul, do serviço secreto da
França. Svetlana disse “não” e os Vetrov voltaram para Moscou em 1970.
Ao se apresentar ao KGB, Vetrov foi lotado
pela PGU (1ª Direção Geral do KGB) na Direção T, especializada em informação
científica e tecnológica. Promovido a tenente-coronel, ainda assim não recebeu nenhuma
condecoração, mas foi indicado para o cargo de chefe do Departamento
Estrangeiro da Direção-Geral das Relações Econômicas, Científicas e Técnicas.
“Supervisionava todos os contatos com os países capitalistas em nome de seu
novo Ministério.”
Mesmo assim, Vetrov queria mais, achava-se
extremamente capaz, porém não tinha protetores na cúpula do sistema e o
nepotismo predominava. Começou a beber muito e arranjou uma amante. Como amava
a mulher, sob pressão dela, rompeu com a amante. Sua vida, mesmo para um homem
do KGB, era muito cara, mas não há indícios de que já recebesse dinheiro dos
franceses. Tanto que, em 1972, a PGU tentou enviá-lo para Marselha, mas o
governo francês vetou seu nome. Sua pequena “fortuna” tinha a ver com “jogadas”
feitas na França, possivelmente propinas de grupos empresariais que negociavam
com a União Soviética.
Em 1974, Vetrov foi indicado para o posto
de chefe dos engenheiros na Representação Comercial da URSS em Montreal,
Canadá. Suspeito de negócios ilícitos, Vetrov foi repatriado pelo KGB. O chefe
da contraespionagem francesa, Raymond Nart, conta que os canadenses tentaram
recrutar Vetrov, mas sem sucesso (os autores do livro têm dúvida sobre o
insucesso). De volta a Moscou, Vetrov é nomeado para o posto de assistente do chefe
do 4º Departamento (Informação e Análise) da Direção T (de Tecnologia) da PGU.
“Do ponto de vista da carreira, o setor era um degradante depósito de lixo com
uma equipe sem motivação e tradicionalmente propensa à bebida”, anotam Kostine
e Raynaud. “O paradoxo é que agora o trabalho de Vetrov consistiria em coletar
e sintetizar os relatórios das residências do KGB, espalhadas pelo mundo,
relativos à informação científica e técnica. O mesmo que entregar as chaves do
galinheiro à raposa.”
Por que um comunista exemplar decidiu
trabalhar para o Ocidente capitalista? A explicação talvez seja mais prosaica
(e humana) do que ideológica. “Após ter passado uma temporada no estrangeiro,
onde as pessoas viviam nitidamente melhor que na União Soviética, Vladimir não
conseguia mais aceitar as realidades russas. Para ele, aquilo era uma subvida,
e tudo que o cercava não era digno dele”, escrevem, possivelmente com acerto,
Kostine e Raynaud. Ao mesmo tempo, Vetrov era boicotado nas promoções. Daí
cultivou um ódio visceral ao KGB. “Aos 48 anos, via-se sem nenhuma perspectiva
e simples tenente-coronel.” Bem informado sobre a situação real da União
Soviética, percebia com nitidez que “o regime comunista achava-se em
decomposição, lenta mais visível”. A vida pessoal começou a degringolar. Vetrov
e Svetlana tinham amantes. Ludmilla Otchikina, uma mulher casada, era a amante
do espião. Eram colegas de trabalho. Ele tornou-se um bêbado contumaz.
“Assassinato” do papa João Paulo 2º
Os mestres da espionagem ficaram surpresos
ao saber que Vetrov trabalhava para a contraespionagem francesa, pois não era
lógico. Mas Vetrov sabia o que estava fazendo. Ele tinha conhecimento que “os
principais serviços especiais ocidentais”, tanto a CIA americana quanto o Sdece
francês, “estavam infiltrados pelo KGB”. O DST, sem experiência externa, era
mais seguro e “a França não era considerada um inimigo de fato da URSS”. Outro
motivo é que havia um contato anterior de Vetrov com agentes do DST. O terceiro
fator é “que, graças à sua temporada parisiense, Vetrov certamente devia
conhecer bem os franceses, suas qualidades e defeitos”. Com a vida pessoal em
frangalhos — ele e a mulher nem conversavam mais, embora vivessem sob o mesmo
teto —, Vetrov decidiu viver nos perigosos subterrâneos da espionagem ativa.
Embora gostasse de ter uma vida boa,
Vetrov não espionou para os franceses, segundo Kostine e Raynaud, por dinheiro,
e sim por raiva do sistema comunista e, sobretudo, do KGB, que era movido pelo
“quem indica”, e não pelo mérito. Com sua ascensão pessoal barrada, Vetrov,
mesmo sem avaliar as consequências de seus atos, decidiu “destruir” o KGB e,
portanto, o regime. Às vezes pedia aos franceses bebida para os amigos e
presentes para a amante Otchikina. Os próprios franceses surpreendiam-se com o
custo baixo de um espião tão valioso, mas é preciso ressalvar que, se Vetrov
fosse notado vivendo além das posses — aliás, antes do contato com os
franceses, já tinha uma vida melhor do que a de outros agentes do KGB —,
imediatamente seria preso.
Para espionar para os franceses, Vetrov
procurou Prévost. O executivo Xavier Ameil, com o apoio da mulher, Claude, foi
indicado para o primeiro contato com o homem do KGB. No primeiro encontro,
Ameil disse que Prévost propunha uma deserção, mas o agente rebateu: “Mas não posso
partir! Quero trabalhar com a DST durante três anos e estou cheio de
informações para passar”.
Uma das primeiras informações de Vetrov
contribuiu para desmantelar a rede de informantes soviéticos na França. Ele
entregou o nome de Pierre Bourdiol e de outro agente. “Bourdiol era o
responsável por todos os documentos relacionados com o Symphonie, satélite
franco-americano, [e] que ia frequentemente aos Estados Unidos, trazendo de lá
um grande volume de informações.” Os franceses ficaram impressionados com o
volume de informações objetivas passadas por Vetrov, em 1981. Um único espião
fazia o trabalho de dezenas de espiões, e com custo financeiro próximo de zero.
Vetrov às vezes pedia uma garrafa de uísque. Ameil deu-lhe uma calculadora, um
despertador elétrico, um anel e um colar (bijuterias). “Vetrov ficou
satisfeito; contentava-se com pouco.” Certa feita, Vetrov entregou para Ameil
“o célebre dossiê Smirnov, chefe da VPK (Comissão Militar-Industrial), que iria
permitir reconstituir todo o sistema da informação tecnológica graças a
documentos assinados pelos mais altos funcionários soviéticos”. Como não era
profissional, Ameil foi substituído pelo adido militar Patrick Ferrant. Os
encontros de Vetrov com Ameil e Ferrant ocorreram todos em Moscou, sob as “barbas”
do KGB.
O codinome Farewell foi escolhido pelos
franceses para, como a palavra é inglesa, enganar o KGB, no caso de descoberta
do espião. O KGB possivelmente pensaria que ele estaria a serviço dos
americanos ou dos ingleses. Ao profissionalizar o contato, o DST, por
intermédio de Ferrant, passou a pagar Vetrov com dinheiro. O sistema de
espionagem era simples e não muito bem planejado. Vetrov entregava documentos
aos franceses, que faziam cópias, às vezes com dificuldade, dado o volume de
informações, e depois devolviam ao espião. Uma vez, Vetrov disse a Ferrant:
“Não vamos parar por aqui, até que eles explodam. Temos de continuar”.
Kostine e Raynaud revelam, a partir das
informações de Vetrov e dos franceses, que, na década de 1980, os soviéticos
tinham medo da terceira guerra mundial. Yuri Andropov, chefão do KGB, chegou a
escrever um memorando “revelando” que o governo dos Estados Unidos estava se
preparando para um ataque nuclear. Vetrov entendia que, como era muito mais
atrasada tecnologicamente do que pensavam os ocidentais, a União Soviética
perderia a guerra e seria destruída.
Uma informação estranha e pouco explorada
no livro dá conta de que os soviéticos “sabiam” que o papa João Paulo 2º
sofreria um atentado. “Gromyko declarara aos representantes dos membros do
Pacto de Varsóvia que o problema com o papa ia ser ‘resolvido’.” Vetrov disse
que “ouviu de seus colegas que ‘não restava dúvida alguma de que a origem do
atentado estava em Moscou’”. Diferentemente de outras informações,
documentadas, Vetrov não apresenta provas do que diz. Mas era fato que o papa
incomodava a União Soviética por causa de sua influência no Leste Europeu,
sobretudo na Polônia, sua terra natal.
Sabotagem tecnológica
Quando François Mitterrand foi eleito
presidente, os diretores e agentes da DST ficaram preocupados. Acreditavam que,
por ser socialista, Mitterrand poderia entregar os segredos da espionagem para
a União Soviética. Mas, ao obter as informações, Mitterrand decidiu não
repassá-las aos soviéticos. “Ele era o único líder do mundo capitalista a conhecer
o sistema de pilhagem tecnológica praticada pela União Soviética, cuja
envergadura era de tal ordem que punha na berlinda toda a política otaniana em
matéria de defesa e segurança.” O diretor da DST, Marcel Chalet, sugeriu que o
presidente informasse ao presidente dos Estados Unidos, Ronald Reagan,
“principalmente sobre o sistema de proteção por radar do território dos Estados
Unidos, inteiramente desvendado pelo KGB”.
Em julho de 1981, em Ottawa, Mitterrand e
Reagan conversaram sobre o assunto. No início, Reagan não percebeu o alcance
das informações. Marcel Chalet passou mais informações ao vice-presidente
George Bush (pai). Ao ouvir as informações detalhadas sobre o sistema de defesa
do território dos Estados Unidos, Bush ficou boquiaberto. Uma reunião foi
convocada, imediatamente, com a participação de William Casey, diretor da CIA,
William Webster, chefe do FBI, e o almirante Inman. Bush disse, depois, “que se
tratava ‘da primeira incursão significativa do Ocidente por trás da Cortina de
Ferro”. Enquanto a CIA patinava, a DST descortinou o atraso tecnológico da
União Soviética e sua política de rapina no campo científico-militar.
Quando William Casey informou com precisão
sobre a apuração de Vetrov-DST, Reagan disse, “absolutamente estarrecido”: “É o
maior peixe desse tipo desde a guerra!”. As informações objetivas e úteis
transformaram Reagan e Mitterrand em aliados e, mesmo, amigos. “Com suas
revelações, o presidente socialista marcava nitidamente adesão ao campo
ocidental e aos seus valores.” O presidente americano percebeu que estava sendo
mal guiado pelas informações da CIA e decidiu mudar de rumo nas relações com a
União Soviética.
Vetrov revela sobre a União Soviética: “É
como um mau aluno que cola do vizinho. Se não pode mais colar, fica sem saída.
Quando precisamos de um pino para um de nossos foguetes, nossos escritórios de
pesquisa nem sequer se colocam a questão de saber que tipo de pino seria o mais
apropriado, mas, sim, em que oficina de Cabo Canaveral poderemos encontrá-lo.
Isso é um absurdo”. O ônibus espacial Buran foi “concebido em grande parte a
partir da pilhagem da tecnologia ocidental. A nave voaria apenas uma ou duas
vezes. Quando perguntarem depois da guerra fria aos engenheiros porque eles
projetaram aquela nave, alguns responderão que não faziam ideia, que se tratava
apenas de copiar os americanos”, escrevem Kostine e Raynaud.
Certa vez, Brejnev pediu aos especialistas
do KGB que dissessem a verdade sobre as condições de a União Soviética
enfrentar os Estados Unidos no campo militar-industrial. Eles disseram que o
país comunista estava atrasado, em comparação aos EUA. Brejnev temia a
instalação dos mísseis americanos Pershing na Europa. O que fazer? A União
Soviética manipulou e financiou os movimentos pacifistas europeus, que passaram
a pregar a paz.
Um dos capítulos mais instigantes do livro
é o 28, “A guerra fria, Reagan e o estranho Dr. Weiss”. Vetrov queria destruir
o KGB e, como consequência, o sistema comunista. Mas não tinha meios para
fazê-lo. Os Estados Unidos, pelo contrário, tinham os meios, a partir de suas
informações. Num primeiro momento, Reagan decidiu atacar a União Soviética mais
“por instinto ou mera convicção”. Faltavam informações precisas sobre a
situação real da União Soviética. Os sovietólogos oficiais ou independentes,
trabalhando com informações e estatísticas do governo comunista, acabavam por
repassar informações pouco fidedignas. Na falta de dados objetivos trabalha-se
com os que se recebe — e os dados do governo soviético eram frequentemente
superestimados, para indicar a “pujança” da economia do país.
Richard Allen frisa que Reagan era
inteligente, ainda que não culto, e sabia jogar duro, como estadista. Sobre o
governo soviético, disse, a jornalistas estupefatos: “Os russos irão mentir,
trapacear e nos roubar tudo que podem para chegar a seu objetivo”. Nesse
momento, Reagan ainda nada sabia sobre Vetrov, mas já havia indícios de que a
União Soviética não estava bem das pernas — extraindo abusivamente petróleo
(como Hugo Chávez) e gás para manter a economia em pé — e que havia certa
insatisfação nos escalões médios e mesmo altos do Partido Comunista.
Ao estudar detidamente as informações
repassadas por Vetrov aos franceses, o National Security Couincil (NSC),
orientado por Richard Allen, percebeu que “o império soviético podia estar
perfeitamente vencido e desaparecer, ideia que parecia estapafúrdia em 1980”. O
NSC criou a “take down strategy” (estratégia de derrubada), “tendo por objetivo
ganhar a guerra fria estrangulando economicamente a União Soviética”. A
estratégia está exposta no documento secreto NSDD 75 (National Security
Decision Directive).
Eram três os pilares da estratégia
americana para minar o comunismo soviético. Primeiro, “a Casa Branca iria
reiterar sua firmeza no domínio geoestratégico e militar. Isso resultará na
instalação dos mísseis Pershing na Europa e na intensificação do apoio aos
movimentos contrarrevolucionários na América Central, em Angola e no
Afeganistão, com o fornecimento de mísseis terra-ar Stinger aos mudjahidin”.
Segundo, contam Kostine e Raynaud, “os
americanos decidiram, em coordenação com as potências petroleiros aliadas do
Golfo, aumentar de maneira significativa a produção petrolífera a fim de
provocar uma queda das cotações do barril, reduzindo assim as reservas em
divisas da URSS. Essa política petroleira será acompanhada por uma política
monetária bastante restritiva do Federal Reserve, que fará cair a cotação do
ouro, outro recurso soviético”.
Terceiro, “Reagan se envolverá diretamente
numa volta brutal da corrida às armas, com, de um lado, a realização de novos
programas militares clássicos, como o do famoso bombardeio furtivo, e sobretudo
pela implantação do projeto de iniciativa de Defesa Estratégica (mais conhecido
pelo apelido de projeto Guerra nas Estrelas). Um desafio tecnológico de porte
lançado a uma economia soviética que repousava em grande parte em seu complexo
militar-industrial, por sua vez dependente da pilhagem da tecnologia ocidental
pela linha X do KGB. Uma rede que, desde as revelações de Vetrov, não era mais
um segredo para a administração Reagan”.
Kostine e Raynaud apresentam um personagem
intrigante, Gus Weiss, conselheiro do National Security Council, especialista
em assuntos econômicos e questões tecnológicas e estratégicas. Antes de servir
ao governo, e depois de ter sido aluno em Harvard, foi um cientista brilhante.
Weiss “era”, nas palavras de Richard Allen, “um gênio”.
Como consultor econômico para espionagem
tecnológica do NCS, indicado por Richard Allen, Weiss recebeu o dossiê de
Vetrov-Farewell. Weiss ficou chocado porque as informações do espião soviético
confirmavam e ampliavam as que vinha colhendo desde 1974. O “dr. Strangeweiss”
(referência ao doutor Strangelove do filme de Stanley Kubrick) “propôs a
William Casey, diretor da CIA e amigo pessoal de Reagan”, em janeiro de 1982,
“adotar um vasto plano de sabotagem da economia soviética transmitindo falsas informações
aos espiões da linha X do KGB. Esse plano recebeu imediatamente a aprovação
entusiasta de Reagan em pessoa”
Uma das preocupações de Weiss era o
petróleo, base do relativo sucesso da economia soviética. A União Soviética
estava preparando a construção de um oleoduto siberiano em direção à Europa do
Leste. “O plano de Weiss ia colocar todo mundo de acordo: por intermédio de uma
empresa canadense, ele transmitiu à linha X softwares de gestão de válvulas e
turbinas de oleoduto previamente carregados com vírus. Programados com um
efeito de retardo, deviam dar a ilusão de que, num primeiro momento, tudo
funcionava normalmente. A súbita ativação dos vírus, em 1983, provocaria uma
imensa explosão de três quilotons de gás na jazida de Urengoi”, na Sibéria.
“Para os soviéticos”, explicitam Kostine e
Raynaud, “a operação de sabotagem do oleoduto era um novo e rude golpe. Em
primeiro lugar, atrapalhava as exportações de hidrocarbonetos e a entrada
crucial de divisas estrangeiras. Como o complexo militar-industrial soviético
repousava em grande parte da tecnologia desviada do Ocidente, o lado americano
tentava fazer com que a catástrofe provocasse uma paranoia geral no KGB em
relação aos equipamentos industriais da URSS e depois uma perda de confiança em
sua espionagem tecnológica, no momento em que a União Soviética mais precisava
dela”.
Em março de 1983, Reagan lança sua
Iniciativa de Defesa Estratégica, o famoso programa “Guerra nas Estrelas”, que
custaria 30 bilhões de dólares. Isto forçou a URSS a retirar dinheiro do
mercado interno, da produção de bens e do consumo popular, para investir na
corrida armamentista, numa tentativa vã e néscia de acompanhar os Estados
Unidos. O resultado é que o país comunista quebrou e tudo leva a crer que o
secretário Mikhail Gorbachev não teve a percepção exata do que estava
acontecendo ou, quando acordou, era tarde demais. Inicialmente, Gorbachev
avaliou, errado, que o sistema poderia ser reformado e seguir adiante, como
comunista. Era um profundo autoengano de um líder inteligente mas que não soube
entender, com nitidez, as forças que estavam em jogo. O sistema estava
carcomido e os soviéticos haviam desistido de continuá-lo.
William Casey e o secretário de Defesa,
Caspar Weinberger, operaram um plano econômico para asfixiar a União Soviética.
“O segmento financeiro, que devia proibir aos soviéticos o acesso ao crédito
dos bancos ocidentais, era pilotado por Roger Robinson, um banqueiro
nova-iorquino experiente no mundo das finanças internacionais. No Departamento
de Defesa, foram Fred Ikle e Richard Perle que se encarregaram de coordenar com
seus aliados a limitação, quando não a interdição das transferências de
tecnologia para o Leste.” Kostine e Raynaud dizem que “é neste último domínio
que a produção Farewell volta a assumir toda a sua importância. Quando Richard
Perle recebeu das mãos de um agente da CIA o dossiê Farewell também ficou
totalmente abobalhado: ‘Naturalmente sabíamos que os russos nos roubavam, mas,
nesse caso, isso ultrapassava tudo que imaginávamos. Para cada pedido de
tecnologia, era alocado um orçamento correspondente para sua coleta’”.
Com as informações de Vetrov, provando que
a União Soviética preferia roubar segredos científicos-tecnológicos do que
investir dinheiro em pesquisa, os franceses também passaram a colaborar com os
norte-americanos nas operações de sabotagem.
Os franceses criaram uma operação sobre
“supostas propriedades de um metal, o isótopo 187 do ósmio, na utilização das
armas que empregavam tecnologia laser. Com o lançamento do projeto Guerra nas
Estrelas por Ronald Reagan, essa tecnologia tornara-se uma das prioridades da
informação tecnológica soviética”. Relata o general Guyaux: “No fim dos anos
1970, falava-se muito do ‘graser’, espécie de laser que utilizava não os raios
do domínio óptico, do infravermelho ao ultravioleta, mas os superenergéticos
raios gama emitidos pelos corpos radioativos. Na França, o professor Jaéglé
tinha obtido um fraco efeito laser com raios X. Mas daí a dominar completamente
o campo raios gama, isso era impensável. Se o ‘graser’ pertencesse ao domínio
do possível, seria uma arma temível, uma vez que os raios gama são muito
penetrantes”. Pois os dados repassados por Vetrov indicam que o governo
soviético estava preocupado em pesquisar o ósmio. “A Direção T orientou
imediatamente seus oficiais de informações” a buscaram informações sobre o “projeto”,
principalmente na França. Os soviéticos passaram a falar de ósmio e “graser”
com frequência. Para iludir os comunistas, os americanos compraram ósmio
natural da própria União Soviética. A URSS torrou dinheiro e não conseguiu o
tal “graser”.
Kostine e Raynaud avaliam que a operação
mais importante da DST “consiste” na “espetacular expulsão de diplomatas
soviéticos identificados graças a Farewell como agentes do KGB”. Os soviéticos
perderam as fontes de informações confiáveis e, como não faziam pesquisas de
qualidade, pois preferiam roubar segredos tecnológicos — porque custava menos
—, ficaram para trás e, do ponto de vista econômico, quebraram o sistema. Por
isso, é mesmo possível chamar Vetrov de o espião que destruiu a União
Soviética. Ele talvez tenha sido o Gorbachev da espionagem. Condenado por
traição à pátria, Vetrov foi fuzilado em 1985.
Outro fato curioso, e raramente apontado,
é que a França do socialista François Mitterrand foi decisiva para destruir o
comunismo soviético. Sem as informações francesas, Reagan e os Estados Unidos
poderiam ter devastado o comunismo de Gorbachev, mas poderiam ter atrasado a
guerra econômica em alguns anos. Nota-se mais a participação de Reagan e
Margareth Thatcher como coveiros do comunismo. Como prova o livro, o primeiro
coveiro talvez tenha sido o socialista Mitterrand. A contribuição do papa João
Paulo 2º também foi crucial para a derrota, porque incentivou e potencializou a
insatisfação interna de alguns países comunistas, como a Polônia.
Notas
Gorbachev da espionagem só foi pego porque
tentou matar a amante.
+ Bebendo muito, Vladimir Vetrov tentou
matar a amante Otchikina e matou um homem. Preso pelo crime, acabou descoberto
como espião para os franceses e foi condenado à pena de morte. Sem o crime,
talvez a espionagem de Vetrov não tivesse sido descoberta.
+ Uma nota sobre “o KGB”. No Brasil, a
maioria dos livros diz “a” KGB, possivelmente numa referência “a polícia
secreta”. Mas, em russo, trata-se de “o” KGB, pois o “k” significa comitê.
+ Vetrov é praticamente um Gorbachev da
espionagem: não queria destruir a União soviética, e sim o KGB, mas, como
Gorby, acabou colaborando para a destruição geral.
+ Curiosamente, no lugar de procurar a CIA
— não o fez, possivelmente, porque a agência norte-americana estava infiltrada
pela KGB —, e o Sdece, o serviço de informações da França, Vetrov procurou a
DST, o organismo francês encarregado da contraespionagem na França. A DST não
tinha nem experiência na área, mas, para os propósitos de Vetrov, funcionou
muito bem.
+ Segundo Marcel Chalet, Farewell teria
sido “uma espécie de Soljenitsyn da espionagem”.
+ Vetrov trabalhava na PGU — Direção Geral
do KGB, “principal serviço de informações soviético”. “Parece inconcebível que
um homem, agindo sozinho e por sua conta e risco, tenha sido capaz de roubar
tantos segredos de Estado dos soviéticos. A ponto de abalar todo o edifício.”
+ O título pode parecer estranho, mas tem
lógica. “Adeus” e “Farewell” significam a mesma coisa. No caso, Farewell era o
codinome de Vladimir Vetrov.
+ Ao contrário da maioria dos
sovietólogos, Vetrov deu ao Ocidente um quadro real da decadência soviética.
A história do espião que derrubou a União Soviética publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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