O
judeu Pál Rónai nasceu na Hungria, em de abril de 1907, e renasceu Paulo Rónai
no Brasil em 1941. Pál e Paulo são a mesma pessoa — o húngaro que se tornou
brasileiro. “O Homem Que Aprendeu o Brasil — A Vida de Paulo Rónai” (Todavia,
379 páginas), de Ana Cecilia Impellizieri Martins, é um livro notável sobre um
indivíduo que deve ser tratado como um homem-civilização. A obra resulta de uma
tese de doutorado, com uma pesquisa rigorosa, mas sem o típico jargão
acadêmico. É tão bem escrita que, se estivesse vivo, o filólogo, tradutor e
crítico literária decerto aprovaria de imediato. Modesto, talvez sugerisse
escoimar as loas (mais dos amigos e menos da autora da biografia). Ana Cecilia
prova a excelência da universidade brasileira — hoje atacada, de maneira vil e
mesquinha, pelo ministro da Educação.
Paulo
Rónai morava na Hungria com os pais — Miksa Rónai e Gisela Lövi Rónai, e cinco
irmãos, Clara, Jorge, Eva, Catarina e Francisco. Aos 20 anos, com 1,64m, era
apaixonado por poesia e idiomas. Na escola, traduzia o poeta alemão Heinrich
Heine. Estudou filologia e línguas neolatinas na Faculdade de Filosofia da
Universidade Pázmany Péter.
Aos
19 anos, Paulo Rónai começou a traduzir poesia latina. Virgílio, Horácio,
Catulo chegaram à revista “Új Idök”, da Hungria, pelas mãos seguras do mestre.
“O deslumbramento veio com Virgílio no dia em que logrei escandir sozinho um
hexâmetro. Comecei a encontrar prazer quase sensual naqueles versos que,
aparentemente iguais, eram de extrema variedade musical”, disse o filólogo, ás
no latim.
Infatigável,
lia com atenção os escritores húngaros Endre Ady, Ferenc Molnár, Gyula Krúdy,
Dezsö Szabó, Desnö Kosztolányi. Um deles era sua grande paixão: “Ady se
convertera na mais absoluta, íntima e definidora referência de Paulo Rónai:
‘Nenhuma obra literária exerceu sobre mim influência igual’”.
Endre
Ady busca construir uma ponte — via poesia, a palavra — entre a Europa, a
Hungria e a modernidade. Paulo Rónai e seu ídolo literário trabalhavam para
evitar o isolamento húngaro e eram apaixonados pela cultura da França.
Professor
de francês, Paulo Rónai leu Balzac e ficou, de cara, mesmerizado. Tornou-se seu
escritor predileto. Tanto pela linguagem quanto pelo fato de o escritor francês
ter construído, mais do que uma catedral, uma civilização com seus vários
livros (Marx sugeria que o autor de “Ilusões Perdidas”, romance corrosivo sobre
a imprensa, fez mais pela história da França do que certos historiadores).
Na
França, em busca tanto da língua escrita quanto da falada, Paulo Rónai estudou
francês na Aliança Francesa e na Sorbonne. Ao voltar, fez traduções — Ovídio e
Salústio — para revistas e editoras. Ele colaborava com a revista “Nouvelle
Revue de Hongrie”.
No
diário, onde anotava os avanços de seus estudos, passou a assinar, no lugar de
Pál, Paul. Em 1930, aos 23 anos, apresentou a tese “À Margem dos Romances de
Mocidade de Honoré de Balzac”. Tornava-se doutor em filologia e línguas
neolatinas — gramática e literatura francesa, latina e italiana.
Para
sobreviver, dava aulas e fazia traduções. “Escritor nas horas vagas, sou
professor por vocação e destino”, disse.
Machado
de Assis e Dom Casmurro
Havia
uma carreira auspiciosa para Paulo Rónai, mas no meio do caminho, como uma
montanha, havia o nazista Adolf Hitler, da Alemanha, e a extrema direita da
Hungria.
Ana
Cecilia registra que, “em maio de 1938”, entrou “em vigor a primeira lei
antijudaica na Hungria, que restringia a 20% o número de judeus aptos a
participar de negócios e a ocupar determinados cargos”.
Preocupado,
Paulo Rónai começou a agir para escapar da Hungria. Tentou ir para o Uruguai,
Chile, Austrália, Colômbia e Islândia. O irmão Jorge mudou-se para a Turquia.
O
primeiro registro à Língua Portuguesa foi feito por Paulo Rónai no seu diário,
em 5 de abril de 1938. “Li poetas brasileiros: trad. ‘As 4 Amigas do Poeta
Triste’”. Pouco depois, escreveu: “À noite traduzi uma poesia brasileira”.
A
leitura de “Dom Casmurro”, de Machado de Assis — lido em francês —, “despertou
o interesse do tradutor”. Era a primeira obra de literatura brasileira lida por
Paulo Rónai. “Uma literatura que tinha romancistas daquele porte não podia
deixar de interessar-me.”
Em
maio de 1938, Paulo Rónai publica, na revista “Új Idök”, “sua primeira tradução
de um poeta em português — “Sonho oriental”, de Antero de Quental, autor de
Portugal. Ele leu “As Cem Melhores Poesias da Língua Portuguesa”, organizada
pela lexicógrafa e pesquisadora Carolina Michaëlis de Vasconcelos.
O
Brasil foi descoberto por Paulo Rónai por intermédio de sua literatura.
“Parecia-lhe estranho na Língua Portuguesa a pouca incidência de consoantes, o
que o fazia pensar que o português era uma versão do latim ‘falado por crianças
ou velhos; de qualquer maneira por gente que não tinha dentes’”, assinala Ana
Cecilia. O amigo Dezsö Kosztolányi disse que o português era “uma língua alegre
e doce como um idioma de passarinhos”.
Insaciável
(e competente), Paulo Rónai traduziu “Os Cinco Sentidos”, de Almeida Garrett,
quadras populares e poemas, como “Cariátide”, de Manuel Carlos. Usava um
dicionário alemão-português e uma gramática portuguesa e fazia as versões com
certa dificuldade.
Pediu
e recebeu de uma livraria de São Paulo o livro “Antologia de Poetas Paulistas”.
Havia trabalhos de 30 poetas. O poema “As quatro amigas do poeta triste”, de
Corrêa Júnior, contém o verso “rede onde descansava e aguardava os sonhos”.
Como não sabia o que era uma rede, Paulo Rónai traduziu assim, de maneira
equivocada: “A rede dos sonhos torcida pela imaginação”. O que era mesmo
“paulista”? O dicionário disponível não informava.
No
consulado do Brasil em Budapeste, Paulo Rónai “conseguiu uma edição de Olavo
Bilac, outra de Vicente de Carvalho e três números antigos do ‘Correio da
Manhã’. Rápido, traduziu uma poesia — “a primeira poesia brasileira vertida
para o húngaro” (não especifica qual). Jorge de Lima encantou-o. “Sentiu um
frêmito interior” ao ler a poesia do bardo alagoano.
O
poema “Acalanto do seringueiro”, de Mário de Andrade, deixou Paulo Rónai
encafifado. O ritmo deixou-o
impressionado. Mas como traduzir “Seringueiro, eu não sei nada!” quando não se
sabia o que era seringueiro nem “o contexto que o cercava”. O que significa
uirapuru? Ah, um pássaro. Mas o que é mesmo “cabra resistente”. Claro,
tratava-se de um homem resistente, não de uma cabra.
Mesmo
com dificuldade com a linguagem enviesada, com seus múltiplos sentidos, Paulo
Rónai não desistiu. Passou a conversar com o cônsul brasileiro Mário Moreira da
Silva, para quem deu aulas de francês. Ao mesmo tempo, trabalhava com o
objetivo de vir para o Brasil. Informava à Academia Brasileira de Letras de
Ciências de São Paulo “de seu interesse pela língua e literatura do país”.
Para
tristeza de Paulo Rónai, Mário Moreira (antissemita) lhe informa que sua
demanda sobre a possibilidade de emigração não havia sido bem-sucedida.
As
forças nazistas iam apertando o cerco sobre os judeus. A família Rónai se
reunia e discutia a possibilidade de se refugiar no Paraguai. Paulo Rónai
preferia o Brasil, e por isso continuava estudando a língua e sua literatura.
Traduziu os poemas “O pé de açucenas”, de Pedro Saturnino, e “A moça da
estaçãozinha pobre”, de Ribeiro Couto. Gostou mais do segundo.
O
escritor Rui Esteves Ribeiro de Almeida Couto era secretário da Legação do
Brasil em Haia. Paulo Rónai escreveu-lhe uma carta e pediu novas obras em
português. Porque queria fazer outras traduções, quiçá uma antologia. O
diplomata respondeu e enviou livros. A resposta do húngaro continha uma
avaliação da poesia do brasileiro, que foi comparado a Kosztolányi.
Ribeiro
Couto e Paulo Rónai se tornaram amigos. Seu “primeiro amigo brasileiro”. O
húngaro avisou-lhe que queria entrar em contato com Menotti del Picchia e
Carlos Drummond de Andrade. Aos poucos, o diplomata começou a ajudá-lo com as
filigranas da Língua Portuguesa — o português brasileiro, quiçá mais
malemolente e musical.
Enquanto
traduzia os poetas brasileiros — a imprensa húngara começou a publicá-los —,
Paulo Rónai dialogava com Ribeiro Couto e o diplomata Otávio Fialho sobre a
possibilidade de mudar-se para o Brasil.
O
escritor Dominique Braga informou, por carta, que um artigo de Paulo Rónai
sobre “Dom Casmurro” havia sido publicado na revista da Academia Brasileira de
Letras.
Depois
de ler “O Mandarim”, de Eça de Queirós, escreveu um artigo sobre Camões e
traduziu poemas de Osório Dutra e de Ronald de Carvalho.
Ao
traduzir poesias, Paulo Rónai contava com notas enviadas por Ribeiro Couto.
Explicava que “morro” podia ser, eventualmente, favela e que “Nordeste” era uma
região do país. O tradutor estabeleceu contato com vários escritores
brasileiros, em sua maioria poetas, e foi entendendo as poéticas do país.
Para
a antologia de poetas brasileiros em húngaro incluiu, entre outros, Olavo
Bilac, Cruz e Sousa, Mário de Andrade, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de
Andrade, Cecília Meirelles, Cassiano Ricardo, Adalgisa Nery, Jorge de Lima,
Menotti del Picchia. A antologia de 33 poemas, de 21 poetas, saiu com o título
de “Mensagem do Brasil: Os Poetas Brasileiros da Atualidade”, em setembro de
1939, com o mundo já em guerra. Era a primeira vez que se lia a poesia
brasileira em tradução na Hungria.
Rapidamente,
Paulo Rónai distinguiu Carlos Drummond de Andrade como um grande poeta — antes
mesmo de sua consagração.
Menotti
del Picchia, diretor da seção paulista do Departamento de Imprensa e Propaganda
(DIP), avisou Paulo Rónai que falaria com o presidente Getúlio Vargas sobre uma
possível mudança para o Brasil. O tradutor escreveu cartas para Getúlio Vargas,
Gustavo Capanema e Oswaldo Aranha.
Getúlio
Vargas escreveu uma carta para Paulo Rónai (transcrita no livro), mas ainda sem
fazer o convite para o tradutor morar no Brasil. Mas sua esperança agora era o
Brasil e o disse claramente a Ribeiro Couto. Ele esperava receber uma bolsa de
estudos do governo patropi.
Em
1940, mesmo acossado pelo antissemitismo húngaro e alemão, Paulo Rónai
continuou lendo a poesia brasileira (Cecília Meirelles, Menotti del Picchia,
Cassiano Ricardo, Ribeiro Couto). A descoberta da lírica de Alphonsus de
Guimaraens o agradou. “Grande artista que me arrependo de não ter conhecido
antes”, anotou.
Ao
amigo Ribeiro Couto, perguntava o significado de “brincar de pipa”, “bater
bola” e “cantar de roda”. Publicou “Versos de Santos”, seleta de poesias de
Ribeiro Couto traduzida para o húngaro.
A
Ribeiro Couto, Paulo Rónai pede empenho para levá-lo para o Brasil, já que seu
visto brasileiro havia sido aceito. “Eu devo partir o mais rápido possível, ou
correria o risco de não poder partir”, explicou.
Condoído,
Ribeiro Couto, assim como Otávio Fialho, se empenharam ainda mais para salvar o
amigo.
No
diário, Paulo Rónai escreve: “Estado de ânimo: à espera de um milagre”.
Entretanto, seu ânimo melhorou ao conhecer a judia Magda Péter, de quem, de
cara, gostou. Logo depois, lhe propôs casamento.
Paulo Rónai é preso pelos nazistas da Hungria
Em
1940, o nazismo finalmente o pega. Paulo Rónai é levado para um campo de
trabalho. No primeiro dia da prisão, ainda pôde ler “Eneida”, de Virgílio. Ele
viveu seis meses no campo de prisioneiros. “Fui convocado como trabalhador
escravo.”
Durante
uma licença do campo, Paulo Rónai conversou com Otávio Fialho e recebeu a
notícia de que o governo brasileiro o convidaria “para emigrar”. Ao voltar à
prisão, lia a poesia de Endre Ady para os detentos. Escondido, fazia traduções.
Na
prisão, chegou a pensar em suicídio. Continuava lendo a poesia de Endre Ady e
estudando português. “Ady era seu refúgio e o português a esperança de um
futuro.” Lia poemas do português Guerra Junqueiro.
A
carta-convite da Legação do Brasil chegou em outubro de 1940 e Paulo Rónai
finalmente obteve o visto.
Otávio
Fialho e Ribeiro Couto foram decisivos para a retirada de Paulo Rónai da
Hungria. Mas, assinala Ana Cecilia, “é preciso não esquecer que o principal
personagem dessa história foi o próprio Paulo Rónai, que, com uma persistência
inabalável, construiu aos poucos e de forma sólida uma ponte com o Brasil por
meio da literatura”.
Em
29 de dezembro de 1940, Paulo Rónai deixa a Hungria, com destino à Áustria e,
depois, Portugal, de onde viria para o Brasil. Levava duas malas. O passaporte
tinha o carimbo: “Sem validade para retorno”. Era uma viagem sem volta. Em
Lisboa, em janeiro, falava português e frequentava o Café A Brasileira e o Café
Chiado. “Foi em Portugal que, pela primeira vez, vestiu a pele do exilado.” No
diário, anotou: “Um dos dias mais tristes da minha vida”. Lia Eça de Queirós,
com interesse. Lia em português com
facilidade. Mas, “nas ruas, Paulo tinha dificuldades para entender o idioma
falado na dicção local”. “Passei seis semanas em Lisboa sem que conseguisse
entender patavina da língua falada”, lembraria.
De
Lisboa seguiu para o Rio de Janeiro, no navio Cabo de Hornos, na terceira
classe. Chegou ao Brasil em 3 de março
de 1941.
No
Brasil, procurou Ribeiro Couto, mas seu protetor estava na Argentina. No Hotel
Elite, colocou a foto da noiva Magda na mesinha de cabeceira. Logo buscou saber
como faria para receber a bolsa e a ocupação propostas pelo Serviço de
Cooperação Intelectual. “Bebeu água de coco pela primeira vez” e concedeu uma
entrevista ao jornal “Correio da Manhã”.
Em
13 de março de 1941, Paulo Rónai encontra-se pela primeira com Ribeiro Couto e
apreciou a “extraordinária vitalidade e o primeiro abraço de brasileiro”.
Conheceu Aurélio Buarque de Holanda, que era secretário da “Revista do Brasil”
e logo se tornou seu melhor amigo.
“Aurélio
Buarque de Holanda seria o principal articulador do movimento de integração de
Paulo Rónai na língua, nas letras e no meio intelectual do país”, conta Ana
Cecilia.
De
cara, Paulo Rónai se tornou amigo de Cecília Meirelles. “Paulo teve a impressão
de que ela vivia ‘au-dessus de la mêlée’, expressão que usou para descrever a
postura de Cecília como a de alguém acima da confusão”, registra Ana Cecilia.
Ele fez questão de conhecer Jorge de Lima. Apreciava sua poesia.
Carlos
Drummond de Andrade contribuiu para a adaptação de Paulo Rónai no Brasil. Sobre
o filólogo escreveu: “Exprimia-se calma e corretamente em português, entendia
perfeitamente o que se lhe dizia. Ele não só aprendera na Hungria o português,
como a nossa maneira de falar essa língua”.
Dadas
as amizades — Carlos Drummond de Andrade na linha de frente, como chefe de
gabinete do ministro da Educação, Gustavo Capanema —, o governo do Estado Novo concedeu uma
bolsa para Paulo Rónai. Mas o Serviço de Registros de Estrangeiros exigiu uma
mudança no prenome: Pál deveria ser substituído por Paulo. E assim foi.
O
dinheiro era curto, mas Paulo Rónai estava vivo. Seu objetivo agora era trazer
a família para o Brasil.
Para
sobreviver, Paulo Rónai escrevia em jornais — começou a apresentar a literatura
húngara para os brasileiros — e dava aulas de latim. Seu primeiro aluno foi
Aurélio Buarque de Holanda (primo de Sérgio Buarque de Holanda) e o brasileiro
o ajudava a ampliar seu conhecimento da Língua Portuguesa.
No
diário, Paulo Rónai escreveu: “Decidi começar uma vida nova”. Publicou um
anúncio no “Jornal do Brasil” se oferecendo para dar aulas de francês e
italiano. “Foi como professor particular que Paulo sobreviveu nesses meses
iniciais no Brasil”, informa Ana Cecilia.
Graças
a Carlos Drummond de Andrade, Thiers Martins e Abgar Renault, Paulo Rónai
conseguiu o registro de professor pelo Ministério da Educação, em 7 de maio de
1941. Começou a dar aulas no Liceu Francês, de latim, e no Liceu Metropolitano,
de francês. E continuou ministrando aulas particulares e traduzindo contos de
Alexandre Hunyady, Ferenc Molnár, Zsolt Harsányi e Kosztolányi. Traduziu “O
Romance das Vitaminas”, de Estevão Fazekas, pela Companhia Editora Nacional.
Era “a primeira obra traduzida diretamente do húngaro para o português”,
sublinhou Paulo Rónai.
Com
o objetivo de trazer a amada Magda Péter, Paulo Rónai decidiu casar-se por
correspondência. O poeta Augusto Frederico Schmidt prometeu ajudá-lo, mas não o
fez. “A Schmidt, nunca mais daria a mão.” Getúlio Vargas acabou indeferindo o
pedido de visto para a jovem húngara.
O
escritor Stefan Zweig matou-se no Brasil, em 1942, certamente acreditando que o
nazista Adolf Hitler se tornaria senhor da Europa e, a seguir, do mundo.
Diferentemente de Paulo Rónai, vivia isolado no Brasil. O húngaro, frisa Ana
Cecilia, optara “por assumir a vida no Brasil como uma possibilidade de
reconstrução. (…) Fez de sua produção e da própria vida um atestado de sua
abertura às possibilidades que o Brasil lhe oferecia”.
Quando
estava desesperado, por causa de sua família, Carlos Drummond de Andrade era o
amigo que mais o acolhia. O vate mineiro deu-lhe para ler o poema “Depois que
Barcelona cair”.
Carlos
Drummond de Andrade, por sinal, foi quem informou-o que, finalmente, o
presidente Getúlio Vargas havia concedido o visto brasileiro a Magda Peter
Rónai.
As
notícias da família não eram boas. O pai do tradutor morreu e seu irmão
Francisco desapareceu em um campo da Sibéria.
O
crítico literário e ensaísta Otto Maria Carpeaux, austríaco que também se
adaptara ao Brasil, se tornou amigo e companheiro de jornada cultural de Paulo
Rónai. O filólogo conheceu também Mário de Andrade e Oswald de Andrade, as
pilastras da Semana de Arte Moderna de 1922.
Em
1943, Paulo Rónai e Aurélio Buarque de Holanda decidiram traduzir contos para
publicar uma antologia universal. O resultado é a excelente coleção Mar de
Histórias, que saiu em 1945. “O título era inspirado em uma antiga coletânea
hindu, ‘Kathasaritsagara’, que” significa “‘mar formado pelos rios da
história”. Paulo traduziu os contos em latim, grego, italiano, alemão, inglês,
russo e húngaro. Aurélio vertia os contos em francês e espanhol e cuidava da
precisão das traduções em português.
Latinista
de primeira, Paulo Rónai publica “Gradus Primus: Curso Básico de Latim I”.
Em
março de 1943, Paulo Rónai começou a coordenar a tradução da obra completa do
escritor francês Honoré de Balzac. O editor era Mauricio Rosenblatt. Vinte
tradutores (entre eles Drummond, Brito Broca, Waldemar Cavalcanti, Mario
Quintana, convocados por Paulo Rónai) começam a transpor para o português “A
Comédia Humana”. São 17 volumes, 12 mil páginas e 7 mil notas de rodapé. Um
trabalho de Hércules, notadamente de Paulo Rónai, que leu e revisou tudo, além
de apresentar as históricas. O primeiro volume saiu em 1946. A obra era “o
maior afresco do século 19”, pontuou o balzacólogo. Por fim, ainda escreveu o
livro “Balzac e ‘A Comédia Humana’”.
Falando
sobre tradução, Paulo Rónai disse: “A tradução é o melhor e, talvez, o único
exercício realmente eficaz para nos fazer penetrar na intimidade [de] um grande
espírito”. O argentino Salas Subirat, tradutor do romance “Ulysses”, de James
Joyce, escreveu: “Traduzir é a melhor forma de ler”.
Morte de Magda Péter e a prosa de Guimarães Rosa
Em
março de 1944, o nazista Adolf Hoffmann chegou a Budapeste e mais de 400 mil
judeus são assassinados, a maioria nas câmaras de gás do campo de extermínio de
Auschwitz, na Polônia. A família de Paulo Rónai escondeu-se em armários da
Legação da Suécia. Magda Péter e sua mãe ficaram na Legação de Portugal.
Em
julho de 1945, Paulo Rónai se torna cidadão brasileiro. Magda Péter Rónai e sua
mãe, denunciadas, foram presas e assassinadas pela Gestapo, em janeiro de 1945.
“Paulo jamais saberia o que exatamente aconteceu com Magda”, informa Ana
Cecilia. Ela tinha 23 anos. Aos 38 anos, Paulo Rónai ficou desesperado.
Com
a ajuda do indefectível Ribeiro Couto e do diplomata João Guimarães Rosa —
chefe de gabinete do ministro das Relações Exteriores, João Neves da Fontoura
—, saíram vistos para Gisela, Catarina, Eva, Américo Gárdos (cunhado), Clara e
Estevão Soltész (cunhado). Paulo Rónai economizou e enviou dinheiro para pagar
a vinda de sua família para o Brasil. Parte do dinheiro saiu de um empréstimo
da Associação Beneficente Israelita.
Em
1946, Guimarães Rosa deu um exemplar de “Sagarana”, livros de contos, a Paulo Rónai.
“De imediato, Paulo reconheceu, no imaginário fértil, na força dos textos
curtos e em uma certa subversão do regionalismo (“[Guimarães Rosa],
apresenta-se como o autor regionalista de uma obra sujo conteúdo é universal”)
uma obra de extremo vigor literário”. O autor mineiro era o “inventor de
abismos”, segundo o crítico.
Paulo
Rónai percebe o vigor narrativo de “Sagarana”: “O leitor vindo de fora, por
mais integrado que se sinta no ambiente brasileiro, não pode estar
suficientemente familiarizado com o rico cabedal linguístico e etnográfico do
país para analisar o aspecto regionalista dessa obra; deve aproximar-se dela de
um lado para penetrar-lhe a importância literária”. Guimarães Rosa postulou:
“Só o Paulo Rónai e o Antonio Candido foram os que penetraram nas primeiras
camadas do derma; o resto, flutuou sem molhar as penas”. Observe-se que, na
época, não havia fortuna crítica para ser consultada e citada. Paulo Rónai,
como Antonio Candido, escreveu no calor da hora.
Numa
crítica posterior, Paulo Rónai compara Guimarães Rosa a James Joyce. “Submeteu
o idioma a uma atomização radical, da qual só encontraríamos precedentes em
Joyce”. Ana Cecilia sugere que talvez tenha sido o primeiro a fazer tal
comparação. Quando saiu “Grande Sertão: Veredas”, em 1956, o filólogo escreveu,
de maneira percuciente: “Que vem a ser esse título estranho, com dois pontos no
meio? A linguagem condensada, elíptica, regional e individual ao mesmo tempo,
embora dentro da linha dos livros anteriores, impõe ao interesse [seria interessado?]
um período de adaptação. […] Mas, lembrados de ‘Sagarana’ e ‘Corpo de Baile’,
confiemo-nos sem reserva ao autor, sigamo-lo por seus caminhos tortuosos”.
Acrescentando: “Conjunto único e inconfundível, algo de real e de mágico sem
precedentes em nossas letras e, provavelmente, em qualquer literatura”.
Riobaldo era, notou, o “Fausto sertanejo”. O livro acabara de ser lançado e
Paulo Rónai já apresenta uma crítica consistente e precisa. “Guimarães Rosa
reconhecia em Paulo Rónai seu grande decifrador”, diz Ana Cecilia. “Pela
intimidade com Guimarães Rosa e sua obra, Paulo foi designado administrador das
edições do autor.” Depois da morte do escritor, em 1967.
Ana
Cecilia transcreve muito bem a interpretação rigorosa de Paulo Rónai para a
obra de Guimarães Rosa (percebeu, desde o início, a dança das línguas e da
linguagem na prosa do escritor mineiro). Neste texto menciona-se tão-somente
uma parte de seus comentários.
Chegada
da família ao Brasil e o amor de Nora
Para
receber a família no Brasil, Paulo Rónai aluga uma pequena casa, na Ilha do
Governador.
Não
para de trabalhar, para sobreviver e, mesmo, por prazer — e traduziu o
belíssimo clássico húngaro “Os Meninos da Rua Paulo”, do húngaro Ferenc Molnár.
Escrevia em jornais, como “O Estado de S. Paulo”.
Depois
de escrever sobre Guimarães Rosa, maior prosador brasileiro, ao lado de Machado
de Assis, Paulo Rónai passou a examinar a poesia de Carlos Drummond de Andrade,
o maior poeta patropi. Examinando “A Rosa do Povo”, assinala: “Os temas
tradicionais de toda poesia renovam-se inteiramente nos versos de Carlos
Drummond de Andrade. À primeira vista, a transformação parece consistir apenas
numa despoetização do assunto tradicional, que o poeta despoja de todos os
atavios convencionais, reduzindo-lhe os elementos à sua nudez primitiva. Mas
quando estão restabelecidos em sua simplicidade substancial, descobre-lhes um
novo e inesperado conteúdo poético”.
O
leitor ganhará, e muito, com a leitura do livro de Ana Cecilia, que resume bem
a interpretação de Paulo Rónai para a poética modernista de Carlos Drummond de
Andrade. Sem críticas anteriores “estabilizadas” e amplas, o crítico soube,
examinando de perto e atentamente, explicar a poesia do bardo mineiro. Com sua
prosa e sua poesia, Guimarães Rosa e Carlos Drummond de Andrade tornaram o
Brasil mais moderno e, por isso, integrado — mas não como epígono — à
literatura mais inventiva de seu tempo. Atualizaram o país tropical e o
tornaram contemporâneo de T. S. Eliot e James Joyce, por exemplo. Paulo Rónai percebeu
isto desde o início — o que o torna pioneiro na interpretação do prosador e do
poeta.
Em
1951, aos 44 anos, Paulo Rónai era um solteirão. Conheceu a arquiteta Nora
Tausz, que chegara de Fiúme, na Itália (depois, Croácia), em 1941, dois meses
após o tradutor. Aos 28 anos, falava húngaro e era inteligente e perspicaz. Os
dois se casaram em 1952 e tiveram duas filhas, a jornalista Cora Rónai e a
flautista e professora de música Laura Rónai. E redescobriu a felicidade.
Depois
de um concurso público, Paulo Rónai passou a lecionar latim e francês no
Colégio Pedro II.
Ensina-se
a traduzir? Parece que sim. Paulo Rónai deu sua contribuição com livros, como
“Escola de Tradutores” e “A Arte de Traduzir”, e com suas próprias traduções.
Ele continuava a traduzir, por exemplo Apuleio, Gottfried Keller e Alexandre
Török. Escreveu o belo “Como Aprendi o Português e Outras Aventuras”.
Na
página 257 há uma referência ao “Dicionário Analógico da Língua” (o título
exato é “Dicionário Analógico da Língua Portuguesa: Ideias Afins”),
possivelmente do pesquisador goiano Francisco Ferreira, que não tem o nome
citado.
Comentando
sobre a escrita de Paulo Rónai, Ana Cecilia pontifica, com razão: “O estilo de
Paulo é avesso a formalismos, impostações; seu texto estabelece um contato
direto com o leitor, convida a uma conversa em que ele se coloca sempre como
narrador e personagem”. Era profundo e, ao mesmo tempo, simples. Escrevia com
clareza, rigor e precisão. Era, de algum modo, um prosador.
Carlos
Drummond de Andrade escreveu sobre o amigo admirável: “Outra façanha dele eu
vi: aprendeu a ser brasileiro”. O crítico Wilson Martins pontuou: “Paulo Rónai
escolheu a liberdade e o Brasil. Eu, de minha parte, se me fosse dado escolher
um compatriota, teria escolhido o sr. Paulo Rónai”.
A
tradução do livro “Antologia do Conto Húngaro”, feita por Paulo Rónai, contou
com apresentação de Guimarães Rosa.
Em
1964, Paulo Rónai voltou à Hungria. Ainda era seu país? Em parte, sim. Mas o
país verdadeiro havia se tornado o Brasil, que o acolhera e possibilitara seu
extraordinário desenvolvimento intelectual. “Paulo sabia que a Hungria não era
mais o seu lugar”, escreve Ana Cecilia.
Em
1980, publicou “Não Perca Seu Latim”. No mesmo ano, traduziu “A Tragédia do
Homem”, peça do húngaro Imre Madách. Depois de anos traduzindo, com o máximo de
qualidade, Paulo Rónai recebeu, em 1981, o prêmio Nath Horst, o Nobel da
tradução.
Aurélio
Buarque de Holanda disse de Paulo Rónai: “Maestria larga e variada. Maestria em
literatura, em línguas, em tudo que ficou dito — e na arte da amizade. O mestre
perfeito, ‘reto, discreto, sábio’, é também, de quebra, amigo perfeitíssimo”.
A
Academia Brasileira de Letras concedeu-lhe, em 1983, o Prêmio Machado de Assis
pelo conjunto da obra.
No
sítio Pois É, em Nova Friburgo, organizou sua biblioteca — chamada de
Brilhoteca (criação de sua neta Beatriz). Carlos Drummond de Andrade escreveu
uma deliciosa crônica sobre a “chácara” (adquirida por Nora, que fez o projeto
da casa e também levava Paulo Rónai, que não dirigia).
Paulo
Rónai, o homem-civilização, morreu em 1º de dezembro de 1992, aos 85 anos. Teve câncer na garganta. Viveu 51 anos no
Brasil. “Paulo se empenhou em fazer da literatura um espaço de diálogo
universal. Paulo Rónai foi um homem contra Babel”, anota Ana Cecilia. “Uma
tradução é saída contra Babel”, escreveu Guimarães Rosa.
Paulo
Rónai foi tradutor, professor de idiomas, filólogo, dicionarista, crítico
literário e antologista. “Trabalho para merecer meu destino.”
Ah, sim, terminada a leitura do belo livro de Ana Cecilia resta dizer que fica a sensação de que mais poderia ser dito sobre, digamos, um homem de cultura enciclopédica e, ao mesmo tempo, altamente especializado.
Paulo Rónai, a história do judeu húngaro que a cultura e o Brasil salvaram do nazismo publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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