A humanidade vive um período ímpar na sua história. Em
razão de uma pandemia de consequências assustadoras, os governos da maioria dos
países determinaram um confinamento doméstico compulsório para a população. Esse
toque de recolher de escala global restringiu famílias a seus lares
diuturnamente, em uma experiência que reacende um interessante debate: após um
período de imersão contínua, com possíveis meses de enclausuramento, haveria
uma maior incidência de nascimentos ou de separações?
Antes de entrar no mérito do assunto, é preciso
reafirmar que, sim, o covid-19 passou de uma ameaça remota para um inimigo
devastador em escala global. Ratificar essa informação pode parecer desnecessário.
Porém, em um país onde ignorantes de todo tipo classificam o novo vírus como
uma gripe comum, de baixa letalidade, que apenas mataria idosos portadores de
doenças preexistentes, reiterar a gravidade da situação é, na verdade, imprescindível.
Infelizmente, a modernidade e suas tecnologias possibilitaram que vetustos gurus
da verborragia descerebrada perpetuassem seus ideais absurdos a ponto de cooptar
e alienar um sem-número de cegos discípulos. É triste, mas é uma realidade de nossos
tempos.
São assustadores os vídeos de grandes cidades como
Madri, Paris e Milão totalmente vazias, como se fossem desabitadas. A imposição
do isolamento social acabou sendo a medida adotada para tentar estancar a
sangria progressiva das contaminações comunitárias, fazendo da casa de cada
pessoa o centro de concentração de todas as suas atividades. Com a presença no
local de trabalho suspensa e sem previsão de volta, a convivência entre os que
dividem o mesmo teto se estreitou ao máximo, permitindo uma maior interação
entre pais, filhos, parentes e, particularmente, casais.
Essa convivência forçada traz uma variedade de
sensações que acompanham a progressão dos impactos da pandemia. Poder-se-ia,
inclusive, descrever um padrão desses sentimentos, fazendo analogia com o que
ocorre na casa do Big Brother. Em um primeiro momento, a incredulidade causa
dúvidas sobre a seriedade da situação, na qual não se está certo de estar
vivendo a realidade ou um devaneio. Um segundo período observável é o do apoio
mútuo, com manifestações de felicidade induzidas, amizades repentinas com
desconhecidos e alegrias compartilhadas — no caso da doença, apenas por detrás
de sacadas e janelas, como ocorreu na Itália. A partir do momento em que se
chega ao ápice, não há mais razão para tais atividades, restando, principalmente,
angústias, tensões e muitos medos. E é nesse período que a ficha cai.
De dentro de seus casulos, no intervalo dos
acontecimentos, os companheiros apaixonados se deparam com uma inusitada
situação de extrema proximidade. A nova rotina é uma antípoda precisa do que comumente
ocorreria nos tempos normais. Sem a necessidade de sair de casa para trabalhar,
os casais têm todo o tempo para estarem juntos, o que parece, ao se tentar ver as
coisas sempre pelo lado bom, um aspecto positivo da restrição do ir-e-vir. Isso
apenas na teoria, claro, uma vez que também transbordam as rusgas, com
ampliação enfática dos defeitos. Nesse diapasão, as redes sociais acabam se
tornando uma estante de aparências, com narrativas maquiadas e um aumento
considerável nas postagens de várias vertentes.
É possível antever que o período de quarentena gerará
duas realidades antagônicas: ou os casais irão aprofundar e avivar seus
sentimentos amorosos ou os dissabores da convivência ininterrupta irão minar o
compromisso. Não é difícil imaginar que muitas pessoas utilizem as jornadas de
trabalho como válvula de escape para “empurrar com a barriga” relacionamentos que
já não estão em seus melhores dias. Nestes casos, a quarentena pode funcionar
como um oportuno estopim para marcar de vez o fim inevitável. Por outro lado,
àqueles que se ajudam na construção constante de uma nada fácil vida a dois, o confinamento
pode vir no timing preciso para
fortalecer a união. Para estes, bebês podem ser consequência da reclusão compulsória.
É certo que as mazelas do coronavírus alterarão de
forma contundente a realidade da população. Superadas as conspirações dos ignorantes
sobre a pandemia, imaginam-se fortes efeitos sobre os arranjos familiares.
Nesse cenário, uma pesquisa realizada na cidade chinesa de Shaanxi pode ajudar
a elucidar a questão: lá, após o declínio das contaminações, houve um número
recorde de divórcios. Por certo, a experiência um tanto claustrofóbica não foi
das mais sadias para os casais. No Brasil atual, cheio de relações já mutiladas
pelos entraves ideológico-partidários pós-eleições, talvez o paredão já esteja
montado para o mesmo desfecho. Em nosso mundo sem estalecas, a realidade não
parece ser das mais esperançosas para bebês produzidos em tempos obscuros. A
ver.
Quarentena é o novo Big Brother. Depois do confinamento haverá mais divórcios ou nascimentos? publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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