Viver em sociedade é entender que há pontos de vista e percepções múltiplas para qualquer questão. Aprender a lidar com o diferente e tentar compreender o outro são atitudes fundamentais para a democracia; pode-se chamar isso de inteligência emocional controlada. Convergir ou divergir de forma equilibrada é o que se espera de cidadãos comuns em suas relações interpessoais.
Viver em sociedade é entender que há pontos de vista e percepções
múltiplas para qualquer questão. Aprender a lidar com o diferente e tentar
compreender o outro são atitudes fundamentais para a democracia; pode-se chamar
isso de inteligência emocional controlada. Convergir ou divergir de forma equilibrada é o
que se espera de cidadãos comuns em suas relações interpessoais. Mas quando é um
líder quem extrapola tais limites da racionalidade, pautando a superioridade de
uma “verdade” sua como se fosse sagrada e única, temos a tirania em seu estado mais
puro. Assim, o pior pode vir a ocorrer, tão mais rápido quanto o governo age
com a certeza de que o mundo todo, menos ele, está errado. Talvez seja esse o
retrato de nosso atual período — com a conivência e a participação ativa de
alguns milhares de cegos,
é bom lembrar.
Cada tempo ou cada estágio social possui um tipo de consciência. O que
hoje se valoriza como normal pode ter sido visto como absurdo em tempos passados.
A consciência é algo plástico, mutável, e não um valor monolítico. Assim, avós
hoje veem atitudes dos netos com estranheza. “No meu tempo não existia isso”,
dizem, incrédulos. Autores da fenomenologia eidética devem explicar melhor essas
situações. Mas permanece o fato de que amenizar as ideias conflitantes de quem
pensa diferente de nós é exercício de sabedoria e racionalidade. Cada pessoa é
única e possui suas vivências, falhas e experiências. Por isso, todos têm uma
visão de mundo própria, não necessariamente verdadeira ou falsa. São apenas
pontos de vista, nada mais.
Essas premissas são bastante relevantes para se tentar compreender a
mente dos que julgam deter a superioridade opinativa. O cálculo destes
indivíduos leva em conta que aquilo que aprenderam como dogma é válido e deve
prevalecer diante de qualquer evidência. Suas ideologias, como messiânicas,
devem, pois, dominar o núcleo social e não apenas comover adeptos, mas extirpar
os divergentes. A demonização constante do oposto, inclusive, faz parte do
ritual de imposição de suas vertentes, independente do assunto que se trate.
Assume-se a condição de salvador, e suas frágeis virtudes, reais ou
imaginárias, ascendem a um patamar mitológico. No mais das vezes, isso nada
mais é do que uma real condição patológica: falta-lhes senso.
Nada disso, porém, é perigoso enquanto tais indivíduos não assumem, de
alguma forma, o poder. No entanto, se o contrário acontece, por algum descuido
do acaso, o preço a se pagar pode ser muito caro, quiçá antidemocrático. É que
tais pessoas não costumam exercer o básico do que se espera de um comandante: ouvir
os outros. A teimosia é sua marca para fazer sobrepor seu colegiado de
convergentes, afastando a construção plural e saudável da comunidade. Se essa
atitude é permeada de idolatria, sem dúvida há espaço para tragédias
anunciadas. É que uma salva de palmas, por mais diminuta que seja, é capaz de
insuflar o ego dos que flertam com os regimes ditatoriais.
Trazendo esse pensamento à nossa realidade atual, com uma pandemia de
proporções arrasadoras, pensar dialogicamente é buscar a união. Quem poderia
imaginar um gabinete de crise, neste momento da história, sendo formado por
palestinos e israelenses?! Apenas situações emergenciais trazem o consenso da
racionalidade; o desespero aguça a compaixão pelo próximo e o instinto de
sobrevivência destrona a egolatria. Por isso, a ciência, os médicos, os
sanitaristas, os chefes de Estado e de governo, na atualidade, parecem unânimes
quanto à necessidade do isolamento social global. Mas, como se vivessem em um
mundo distante, alguns líderes eleitos se opõem e encaram a crise mundial como
passageira e inofensiva. Se alguns morrerão, faz parte do jogo, mas o país não
pode parar. “Qu’ils mangent de la brioche.”
O isolamento tem por finalidade comprimir a curva de contaminação do
vírus. É uma medida que mostrou eficiência em países como Singapura, Coreia do
Sul e China. Porém, alheios a tudo isso, talvez regozijados e anestesiados por demonstrações
de apoio insensatas de parte de suas bolhas sociais, há líderes que contrariam
todos os casos de sucesso ao redor do globo para impor o que lhes parece certo.
É a sua verdade contra o mundo, contra a ciência, contra a medicina, contra os
especialistas e contra a lógica. Mas é a sua verdade — então é suficiente.
Acatar outros pontos de vistas seria fraquejar e dar o braço a torcer. Não é do
feitio dos autoritários enxergar o certo. Em suas mentes paranoicas,
conspirações são sempre bem-vindas e cultuadas aos montes. Só o que não se pode
é perder o controle da narrativa construída, é claro.
Em meio às tragédias, são as lideranças políticas decentes que se sobressaem,
com suas tomadas de decisão responsáveis. Na Índia, país dos mais populosos do mundo,
quase um bilhão de pessoas segue uma quarentena obrigatória e restritiva. É que
lá, como em outras regiões do planeta, as medidas que deram certo servem de guia
para vencer a moléstia assustadora covid-19, comumente chamada de coronavírus.
Contudo, em lugares onde há mentes que cultuam a “lacrada” constante como calmante
das massas, e que têm como válvula de escape constante estigmatizar ao máximo
os meios de comunicação, faz-se curiosamente compreensível que nada de racional
ou lógico seja válido.
A nudez do rei desses lugares é evidente e apenas os idiotas, inebriados pela confusão ideológica, continuam felizes a aplaudir. Ou a mugir — a depender do ponto de vista e da percepção tomados.
Ilustração: José Carlos Guimarães
Quando a nudez do rei fica evidente, apenas os idiotas continuam felizes a mugir e aplaudir publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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