quinta-feira, 5 de março de 2020

Simone de Beauvoir: Uma Vida

Simone de Beauvoir: Uma Vida

Jean-Paul
Sartre e Simone de Beauvoir cometeram o desatino de apoiar o stalinismo, o
comunismo criado por Stálin na União Soviética — que assassinou cerca de 30
milhões de pessoas (as pesquisas a respeito ainda são preliminares; só de fome,
na Ucrânia, foram 4 milhões de indivíduos). Não só apoiaram, o filósofo e
escritor e a escritora (por sinal, melhor prosadora do que o autor de “A
Náusea”) justificaram o regime genocida do czar da Geórgia. Ao mesmo tempo, são
figuras emblemáticas — até incontornáveis — do século 20. Tanto por aquilo que
escreveram — Simone de Beauvoir se tornou a papisa do feminismo (“ninguém nasce
mulher, mas se torna mulher” é uma de suas frases-pensamentos mais célebres) e
sua prosa memorialística chega a ser deliciosa (“Cerimônia do Adeus”, sobre a
decadência física de Sartre, é um espetáculo, apesar da crueza das histórias e
da narrativa) — quanto pela militância política. Eles sempre estiveram
envolvidos com os acontecimentos da França e de outros países — pontificando
sobre tudo e todos, atraindo a atenção da sociedade. Pode-se sugerir,
inclusive, que Sartre foi um dos primeiros filósofos globais — uma verdadeira
estrela, que, embora considerado feio e desengonçado, era tão cultuado quanto
artistas de cinema e música. Tornou-se, até, um homem cobiçado por mulheres
belas e, algumas, famosas. Era, dizia-se, um “fauno”.

Simone de Beauvoir

Simone
de Beauvoir e Sartre mantiveram, por um longo tempo, um relacionamento livre —
com cada um tendo seus namorados e suas namoradas. A escritora não escondeu,
por exemplo, que teve seu primeiro orgasmo com o escritor Nelson Algreen (a
informação, divulgada pela escritora, teria descontentado o americano) e
namorou Claude Lanzmann.

A
fama de Sartre e Simone de Beauvoir não “escondeu” o imenso talento do escritor
Albert Camus e do filósofo Raymond Aron. Camus, como escritor, tende a
sobreviver como um gigante, ao contrário do casal (que precisa do reforço mais
de militantes do que de leitores não engajados). A longo prazo, as críticas e
interpretações de Aron mostraram-se mais sólidas. Por vários motivos, e talvez
o principal deles tenha sido o fato de que Aron estava preocupado com a
verdade, com os fatos, enquanto Sartre às vezes distorcia os fatos para
produzir “novos fatos”. Para Sartre, assim como para Simone de Beauvoir, a
verdade podia ser sacrificada no altar da política, da ideologia. O historiador
britânico Tony Judt tem um livro seminal para quem quiser entender melhor o que
se está dizendo: “Passado Imperfeito — Um Olhar Crítico Sobre a
Intelectualidade Francesa no Pós-Guerra” (há outro livro de sua autoria em que
ressalta a importância de Camus e Aron e a decência ética de ambos).

Sartre
e Simone de Beauvoir são figuras tão gigantescas (portanto, não meramente
stalinistas), tão vivas no imaginário intelectual e político da Europa (talvez
do mundo), que não podem ser descartadas. São interessantíssimas. Parecem, por
vezes, personagens de literatura que escaparam de um livro de Dostoiévski — ou
talvez de Stendhal — e se tornaram seres reais. Cabe devolvê-los à literatura?
Quem sabe.

A
Editora Crítica publica em português o livro “Simone de Beauvoir — Uma Vida”
(416 páginas), de Kate Kirkpatrick. Trata-se de uma radiografia atualizada da
vida e da obra da escritora — no caso, vida e obra têm uma profunda identidade
— que entra para a minha lista de leituras de 2020 (claro que a obra fala
também de Sartre, companheiro de jornada, e dos “desafetos”, como Camus). Quem
leu sustenta que se trata de uma obra séria e não laudatória. Um de seus
méritos é, frisam, tratar Simone de Beauvoir também como filósofa.

Simone de Beauvoir: Uma Vida publicado primeiro em https://www.revistabula.com



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