domingo, 15 de dezembro de 2019

Aquele tipo de homem que cuida melhor de um carro do que de uma mulher

Aquele tipo de homem que cuida melhor de um carro do que de uma mulher

Um cara bateu no meu carro. Não que eu me importe tanto com isso. Sou menos materialista do que você imagina. Não sou dono de nada: nem de um carro, nem de uma dívida, nem de um destino. Acidentes são coisas que acontecem. Um cara bateu no meu carro. Pimba! Nada grave. Apenas, danos materiais, é o que se diz. Ninguém se feriu, a não ser o meu brio. Estava estacionado numa vaga regulamentar e, quando voltei, voilà! A porta amassada.

Um cara bateu no meu carro e se mandou. Não faço ideia de quem seja. Um coxo. Um anão. Um bolsonarista. Um gay. Um afrodescendente. Um homem cego de ódio. Quem sabe, uma mulher elegante, de pernas esguias, que se expõe ao risco de dirigir calçando sapatos de salto alto. Talvez, um velho com reflexos lentos, igualmente envelhecidos, e que, de manhã, só pega no tranco por causa da artrose. Não é pra rir. Envelhecer é dose. Seu Aguinaldo, até hoje, dirige carros. Aos 90 de idade, não sei que vantagem ele vê em pilotar pelo trânsito infernal da cidade. Ele chora só de pensar que, um dia, vai entrar no céu e se deitar nos braços do Senhor, onde haverá de reencontrar papai, mamãe e a filha caçula que furou a fila ao morrer de escarlatina, ainda criança, nos fabulosos anos 1960. Morria-se, e ainda se morre, de doenças infecciosas ridículas nos países pobres. Caganeira e corrupção, por exemplo.

O sol ardia sobre os ombros da cidade. Um cara veio e bateu no meu carro, um carango usado, démodé, cheio de detalhes na lataria e que completou dez anos ininterruptos de uso. Parabéns à Ford. O sistema que vocês criaram para o arrefecimento da temperatura do motor é mesmo uma bela joça. Já gastei os olhos da cara com a porcaria do radiador. Muito obrigado mesmo. Não reservo, portanto, um apego exagerado por esta máquina sobre quatro rodas, a não ser, a gratidão pelo motor alcoólatra, de quatro cilindros, que rodou comigo mais de cem mil quilômetros. Não sou aquele tipo de sujeito que cuida melhor de um carro do que de uma mulher. Não. Já passei dessa fase. Hoje, não cuido bem de nenhum dos dois. Vida que segue.

O que me incomoda, no duro, não é o amassado na porta, a tranca que já não destrava mais, a chuva linda, fria tão aguardada, que vaza pela fenda artificialmente criada por causa do abalroamento, que encharca o carpete do assoalho, deixando um cheiro desgraçado de rabuja que jamais sairá das minhas narinas. Não. Definitivamente, não é nada disso. Ora e essa: custava a pessoa colocar um bilhete na droga do para-brisas; o número do telefone; um pedido de desculpas; o contato de uma massagista universitária e sem frescuras; uma estrofe do poema “Os Estatutos do Homem”, de Thiago de Mello; a indicação de um lanterneiro de mão-cheia que manobrasse o martelinho-de-ouro com a mesma destreza de um cirurgião que instrui coronárias?

Os danos materiais passam. Até aí, tudo bem. Tudo bem mesmo. Honestamente, não estou nada preocupado com a aparência do meu depauperado automóvel. Já não sofro tanto pela vaidade. Na verdade, posso rodar num carro amassado por mais 100 mil quilômetros, até que ele se desintegre, como a minha paz de espírito. O que me perturba não é a injúria à carenagem, o fato de eu ter que entrar de gatão no veículo, pelo lado do passageiro, correndo o risco de me autoempalar com a manopla do câmbio — a qual possui um caranguejo dentro de uma bolota de acrílico — , padecendo de câimbras terríveis nas panturrilhas ao ser obrigado a pular de um banco para o outro. Já fui bom em trepar dentro de veículos. Hoje, não. Hoje, não tenho mais a mesma elasticidade, muito menos, as gatas com cecê.

O que de fato me irrita, a ponto de eu me dispor a escrever essa crônica, para não ferver, é constatar que uma pessoa colidiu com o meu carango e vazou. Já não basta o óleo pingando pelas juntas do cabeçote? As minhas hemorroidas choram. De uma forma ou de outra, ficarei no prejuízo, seja ele financeiro, psicológico, espiritual ou anal. Tão cedo não arrumo a lataria dessa pinoia. Tão cedo não me operam as pregas e membranas. A grana anda curta; a paciência, nem te conto.

Quisera morar numa cidade onde pudesse ir a pé para o trabalho; onde pudesse pegar o metrô sem ser encoxado por um boi-sem-coração. Quisera viver num lugar como Amsterdã, onde há mais bicicletas do que ralados nos joelhos. Quisera pedalar uma magrela ao encontro de uma mulher empolgada, rechonchuda, mais cheia de curvas do que a rodovia Belém-Brasília. Quisera caminhar até gastar os sapatos, os pés, as canelas, os joelhos, as coxas, o quadril, o corpo inteiro, derretendo feito vela, de indignação e de raiva, até sumir na paisagem quente de um país tropical, abençoado por Deus e bonito por natureza. Eu sei que os acidentes acontecem. Malandragem, não. Malandragem se pratica, deliberadamente. E como.

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