sábado, 28 de dezembro de 2019

Réquiem dos homens tristes que trabalham para as fábricas de armas

Réquiem dos homens tristes que trabalham para as fábricas de armas

Meu velho pensou que morreria aos 40. É um sobrevivente das doenças infectocontagiosas, das moléstias degenerativas, dos acidentes previsíveis e dos imprevisíveis também; em particular, safou-se do próprio pessimismo ao longo de 80 anos de desfrutes e de perrengues. Ele achou que repetiria o enredo do seu pai que foi encontrado morto dentro da cabina de um Fenemê, muito antes de eu nascer. Foi parido ainda de vez, aos sete meses de barrigada, numa noite atroz com tempestade de raios, sob luz dançante de lamparina, dentro de um casebre de sapé infestado de sombras e de barbeiros. Fazia medo nascer daquele jeito. Passado o risco de morte iminente durante a desova-de-pobre, aplicaram-lhe emplastro de picumã no umbigo novato e feio. Apesar disso, escapou ileso do Mal dos Sete Dias. A necessidade fez o sapo pular: pegou com facilidade as chupetas escalavradas dos peitos muxibentos de uma mulher sem calçados que guardava enormes predicados. Sugou daquela fonte láctea durante quatro anos cravados, quando então foi escoiceado com jeito das tetas maternas, como fazem as vacas aos seus bezerrinhos. Padeceu dezenas de pragas infantis, muitas delas de risco letal, que criavam febre, perebas e dúvidas de fé. Resistiu à picada de escorpião e aos insultos carnais dos espinhos de macaúba. Escapou do abraço de uma sucuri engolidora de novilhos e das mandíbulas rascantes dos porcos-do-mato. Sob os auspícios da sábia mãe analfabeta, largou de capinar lavouras e se enfurnou na escola. Conheceu os livros, os perigos do saber. Recuperou-se de um atentado à navalha enquanto se barbeava para aprender a namorar com as quengas. Desatou um choque anafilático surgido após o ataque covarde de uma chuva de abelhas africanas que ferroam, indistintamente, homens e mulheres de todos os continentes. Fumou king sizes. Sobreviveu à boemia. Curou-se de uma tosse tísica. Teimou com a física das coisas ao tombar um trator na encosta de um morro. “De acidente, eu não morro”, repetia para si, em fenômenos de autoajuda, enquanto gatinhava como um soldado ferido até a sede da fazenda, contando um total de sete costelas moídas e um dos pulmões com o fole rasgado pela lasca de um osso. Ele, que me ensinou desde os primórdios que homens não choram, chorou que nem menina, que nem qualquer ser humano choraria ao ter os canudos urinários entupidos por pedras semipreciosas feitas de sal e sede. Cada um dói à sua maneira, mas, dói. Foi jurado de morte, mas, nunca lhe fizeram esse favor. Ria-se das tão-humanas misérias pessoais. Escapuliu de se afogar com mágoas-e-tudo dentro de um tonel de Cuspe. Recusou emprego estável numa fábrica de armas. Passou em concurso público. Trabalhou durante décadas num banco estatal contando dinheiro dos outros. Aposentaram-no por invalidez. Validou aquela velha premissa de que deveria ter amado mais. Teve a próstata arrancada pelos alicates adestrados de um cirurgião ventríloquo. Capotou Kombi na reta. Aplacou uma insanidade inata que até hoje faz a maior falta. Agora, pinta quadros, toma comprimidos e conta histórias das quais todos se impressionam e riem, como se estivesse sendo contadas pela primeira vez.

Para o meu pai, com amor infindo.

Réquiem dos homens tristes que trabalham para as fábricas de armas publicado primeiro em https://www.revistabula.com



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