quarta-feira, 4 de dezembro de 2019

Malévola: Dona do Mal. Um enredo ingênuo esconde atrocidades nazistas e retratos de nossa história

Malévola: Dona do Mal. Um enredo ingênuo esconde atrocidades nazistas e retratos de nossa história

Contos de fadas, em sua maioria, são metódicos nos clichês. Uma princesa oprimida, uma rainha má, uma história de romance impossível e aquelas reviravoltas nada inesperadas sempre aparecem. O segundo filme de Malévola, contudo, apesar de apresentar uma experiência infantil com todos esses elementos, também apresenta um pano de fundo com muitos aspectos de acontecimentos reais, fortes e marcantes, do período nazifascista, além de inserções que remetem à nossa história. E podemos tirar disso muitas lições interessantes.

Chama a atenção, em um primeiro momento, a grande isca do título do filme. É que, desde o final da primeira película, a protetora do reino dos Moors magnificamente interpretada por Angelina Jolie já não é sequer vilanesca, que dirá a dona abstrata de todo o mal, como a chamada sugere. No decorrer da própria continuação, percebe-se essa desconstrução através dos laços cada vez mais intensos com sua protegida Aurora, a suposta protagonista e rainha. O foco, por sinal, gira em torno de como a madrasta de Aurora consegue lidar com seu próximo e controverso casamento. Nada de surpreendente, em se tratando de obras da Disney.

No entanto, apesar do enredo levemente previsível que caracteriza essa vertente infantil, há uma subida de tom na continuação que evidencia certo afastamento da proposta inicial. Distante da “fofura” marcante do filme anterior, a saga de Malévola ganha batalhas mortíferas, experiências amedrontadoras e mortes sequenciais. Se o intuito inicial era mostrar o ponto de vista da vilã da Bela Adormecida, relativizando sua maldade, agora as atenções são voltadas para os obstáculos a um casamento meteórico e conturbado, que escamoteia as pretensões dominadoras de uma vilã inesperada.

Nesse diapasão, experiências terríveis são desvendadas nas catacumbas do castelo do reino humano, a começar pelo duende servil que, alienado, trabalha para seus algozes e cria poções para destruir seu próprio povo — coincidência com alguma realidade? Entre seus afazeres, paga moedas em troca de seres feéricos de seu antigo convívio, aprisionando-os para transformá-los em objetos inanimados. Aqui, um primeiro flerte com o nazismo, lembrando os funestos experimentos genéticos na busca pela harmonização da raça ariana, a exemplo dos perpetrados por Josef Mengele, o “anjo da morte”.

Mais à frente, num nítido movimento de extermínio, a rainha se dedica a aperfeiçoar armas químicas. No auge da história, simula o casamento dos protagonistas, aprisiona os seres mágicos na igreja e ordena a incineração deles por meio de um nefasto órgão orquestrado para expelir gás venenoso. Uma nítida referência às câmaras de gás nazistas, naquele odioso marco histórico que dizimou milhões de judeus através da “solução final”.

A rainha, por sinal, naquele tradicional momento em que relata seus planos malignos para os mocinhos, deixa escapar que mentiu repetidas vezes para criminalizar os seres mágicos. Por sentir inveja de sua felicidade, atribuiu a eles a maldição por que passava seu reino quando pequena, com o intuito de angariar a adesão da população à sua causa através do medo. Isso tem um viés condizente com o ocorrido na Alemanha dos anos 1930, notadamente com o episódio do incêndio do Reichstag e da fulminante “Noite dos Cristais” — pogrom realizado pelos nazistas contra os judeus na época —, e também com a frase constantemente atribuída a Goebbels sobre mentiras que se tornam verdades.

Aliás, no afã de ampliar seus horizontes, o filme traz também uma forte crítica social em sua construção. As mulheres são retratadas como atiçadoras das discórdias entre os reinos, com uma Aurora um tanto abobalhada, uma rainha com intenções de dominação e Malévola em sua crise existencial. São elas que desencadeiam todos os sentimentos ruins da trama — ódio, traição, usura, interesse, excesso de ingenuidade e outros —, enquanto os homens são retratados como bons moços que buscam a paz e a harmonia. Isso sem falar da criminalização dos seres encantados, relegados a uma caverna, mesmo tendo poderes extraordinários, por medo da repressão dos humanos.

O filme, apesar da simplicidade e do final mais do que esperado, aporta uma construção narrativa com laivos de nossa fria realidade. Apesar de furos e desencontros com o filme anterior, há uma valiosa exploração de situações que podem passar despercebidas. Como lições primordiais, o olhar diferente sobre estereótipos e a desconstrução de dicotomias absolutas. Mesmo criticado, é um filme interessante, que expõe indiretamente a paulatina tomada de poder por déspotas conservadores e as mazelas que isso pode causar, e também mostra como devemos enxergar tais situações pontuais para fazer com que jamais deixem de ser apenas “era uma vez”. A realidade não comporta cegueiras, e a Alemanha nazista é um bom exemplo disso.

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