Longe? Longe é um lugar que não
existe. Em busca do tempo perdido, lá estava eu, Tristram Shandy, o
estrangeiro, frente a frente com os caninos brancos do cão dos
Baskerville. Não sei se por crime e castigo, se por orgulho e
preconceito, eu tinha a missão de subir a montanha mágica, que
pertencia aos irmãos Karamázov, para resgatar, pasmem os senhores, ninguém
mais, ninguém menos do que o pequeno príncipe, filho de Romeu e
Julieta, neto predileto do Rei Lear, o caçador de pipas que
se perdera pelos campos incutido em brincar o jogo da amarelinha e a
tocar o tambor. A época da inocência, vocês sabem.
Foi uma verdadeira odisseia
fugir da sanha assassina daquele animal raivoso. Se não cumprisse o meu intento
até 1984, estaria definitivamente condenado a uma temporada no
inferno: cem anos de solidão trabalhando numa lavoura arcaica
como o apanhador no campo de centeio. Numa longa jornada noite
adentro, despistei o meu algoz, valendo-me da mesma diligência e astúcia do
engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha. O processo foi
relativamente simples: montado sobre as asas da pomba, cruzei o trópico
de câncer e o meridiano de sangue e, em pouco tempo, atingi o topo da
montanha onde pude, finalmente, enxergar o grande sertão: veredas.
A terra desolada e o
deserto dos tártaros passavam longe dali. Como não estivesse entre as
flores do mal, deparei com o príncipe brincando naquele paraíso
perdido. Um delicado delírio. A insustentável
leveza do ser. Folhas de relva flutuavam sob o som e a fúria
do vento. Não por acaso, o local era conhecido entre os maias e os miseráveis
como o morro dos ventos uivantes. O leopardo e o lobo da
estepe passavam pelo garoto sem ímpetos de devorá-lo. A cena do menino
brincando sozinho produzia em mim, o homem sem qualidades, grandes esperanças,
a utopia, a metamorfose que eu tanto ansiava. O sol é para todos,
pensei, com a mesma altivez de um Ulysses.
Repentinamente, a náusea me
atinge. Sinto saudades de Anna Kariênina, a minha amada. A morte de
Virgílio vem-me à lembrança. Um sopro de vida. Um incidente em
Antares. Morreu o nosso filhinho, ainda criança, sob as rodas das carruagens
de fogo. Penso no doutor Fausto, o médico e o monstro que me
prescrevera pílulas contra a guerra e paz que maltratavam o meu peito. Era
a peste a me devorar os neurônios, criando em minha mente devaneios em
prol de um admirável mundo novo. Eu padecia de ilusões perdidas.
Enquanto agonizo, o garoto brinca como se fora eu o homem invisível numa terra sonâmbula. As crianças não sabem que, regra geral, a condição humana é malvada. Desapercebido da minha presença, alheio aos meus dilemas existenciais, diante da dor dos outros, o menino ri e se diverte, como já fizera a menina que roubava livros. Ele sequer suspeita por quem os sinos dobram e que essas são apenas a vida e as opiniões do cavalheiro Tristam Shandy, o contador de histórias extraordinárias.
Foram utilizados na estrutura de textos os títulos de livros famosos, clássicos da literatura mundial, numa óbvia homenagem à literatura e aos amantes da leitura de livros.
Ler livros não dói, não cega e não provoca impotência sexual publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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