Mais um fim de ano
chega e, com ele, também o já tradicional especial de Natal do Porta dos
Fundos. Desde 2013, o aclamado canal de vídeos produz seu debochado episódio temático,
que sempre acaba se tornando ponto de partida de debates sobre os limites do humor.
Em 2019, porém, a sátira parece ter causado um alarido incomum, provocando a
ira de religiosos e movimentando uma corrente que propõe até mesmo a sua
censura. Tudo por conta de uma representação de Jesus que supostamente vilipendiaria
os valores e a fé cristãos. A questão, óbvio, não é das mais simples.
É praticamente uma
tradição do canal Porta dos Fundos se envolver em polêmicas religiosas na época
das festividades natalinas. O que era para ser um momento de paz, união e amor
ao próximo acaba incendiado pelas chamas da discórdia atiçadas por um dos
maiores veículos de produção comunicativa do país. O Porta dos Fundos possui quase
vinte milhões de inscritos e bilhões de visualizações em seus vídeos, tendo sido
por muitos anos o maior canal de entretenimento do Youtube brasileiro. Não por
acaso, em 2019 recebeu o Emmy Internacional na categoria de “Melhor Comédia”,
justamente por um desses provocativos especiais de fim de ano.
Eis que, no vídeo
intitulado “A Primeira Tentação de Cristo”, há uma elevação nos tons do deboche
e da acidez. A provocação, sempre marca característica das inteligentes
esquetes da trupe, fica bastante acentuada com tiradas irônicas sobre o
contexto que envolve a representação do aniversário de Jesus. Os pontos
cruciais de toda a celeuma envolvem a sexualidade de Cristo, sua relação íntima
com um amigo encontrado no deserto e a humanização de um Deus “troll” e
piadista e seu envolvimento com Maria. Um prato cheio para que conservadores,
religiosos e simpatizantes iniciassem uma espécie de caça às bruxas, ainda que isso
não encerre nenhuma novidade em se tratando do Porta dos Fundos.
Após o lançamento,
muitos manifestos de pessoas importantes no meio político, religioso e
artístico condenaram o especial. Um abaixo-assinado, contando com mais de meio
milhão de adeptos, foi proposto nas redes, com o intento de fazer com que a
Netflix, que exibe o episódio, cancele a sua distribuição. A principal acusação
dos que vociferam contra a curta película é a de blasfêmia, notadamente por expor
ao ridículo toda uma cultura religiosa e por ser ato atentatório à liberdade de
fé, uma vez que denotaria prática de intolerância tão condenável quanto a
homofobia ou o racismo.
De fato, a
polêmica é extremamente complexa e está longe de ser uma novidade ou
exclusividade brasileira. Basta lembrar que, com o avanço do protestantismo, ainda
no século 16, a Igreja Católica promoveu o Index Librorum Prohibitorum — uma
lista de livros proibidos, segundo ela atentatórios à fé cristã. Mais
recentemente, houve um massacre na redação do jornal francês “Charlie Hebdo” em
razão de charges ofensivas aos mulçumanos, culminando na extremada resposta de
uma chacina deliberada no prédio que sediava o veículo. Surge assim o
questionamento sobre a pertinência ou não de se considerar o direito de ofender,
gratuita ou deliberadamente, tão protegido quanto o da liberdade religiosa.
Há mesmo quem fale
dos riscos de uma alargada liberdade de expressão. Nos Estados Unidos, por
exemplo, esse direito, consubstanciado na objetiva Constituição e em sua
Primeira Emenda, garante que neonazistas possam ordeiramente sair às ruas para reafirmar
uma suposta superioridade branca, sem que isso seja impedido pelas autoridades.
Em um país como o Brasil, onde a maturidade política e de convivência harmônica
entre ideais plurais cede lugar ao isolamento em “bolhas” de pessoas com as
mesmas crenças e valores, uma liberdade desse nível é difícil de imaginar — pelo
menos sem que acarrete consequências catastróficas.
Ainda assim, obras
escrachadas e satíricas, como essa do Porta dos Fundos, não devem ser
condenadas à censura. Por mais que se mostrem grosseiras, rudes, de mau gosto,
ofensivas ou repulsivas, sua liberdade artística deve prevalecer diante das
tentativas de vedação total de sua exibição. Como tantos outros programas (como
“South Park” e “Family Guy”, por exemplo), esse tipo de humor se baseia na
ofensa sem limites e tem um público fiel, que
curte e admira suas ideias. Punir com a censura certamente só irá inflar a
curiosidade dos que ainda não assistiram ao episódio em questão.
Nem a liberdade de
expressão nem a religiosa são direitos absolutos, e o seu confronto, com
faíscas intermitentes, jamais deixará de existir. No fim das contas, por ser um
embate cíclico, a experiência anterior pode apontar a ineficácia da censura: em
um movimento explicável pelo efeito Streisand, o vídeo que satirizava a Igreja em
2014 teve milhões de visualizações e, de lá para cá, os inscritos do canal se
multiplicaram. Diante de manifestações consideradas odiosas, buscar a censura
pode ser um verdadeiro tiro no pé para as pretensões condenatórias. Para os
incomodados, há a válida saída de simplesmente não assistir ao vídeo. Apesar da
compreensível revolta, pedir a censura do especial parece ser uma saída pela
porta dos fundos de um país que se pretende democrático e plural. Proibir nunca
é a solução.
Porta dos Fundos: para os incomodados, há a válida e democrática opção de não assistir publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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