segunda-feira, 16 de março de 2020

A era dos ídolos estúpidos e dos cérebros ocos (quando uma democracia morre, ela morre para todos)

A era dos ídolos estúpidos e dos cérebros ocos (quando uma democracia morre, ela morre para todos)

Fotografia: Tomaz Silva/Agência Brasil

Dentre as
liberdades previstas como direitos fundamentais na Constituição brasileira, a
de manifestação talvez seja uma das mais importantes. Permitir ao povo que se
reúna para protestar sobre abusos, reclamar direitos, expor injustiças ou
apoiar acontecimentos é sinal do funcionamento pleno de uma democracia. Mas que
as pessoas desfrutem desse direito saindo às ruas para pedir um novo AI-5, o
fechamento do Congresso ou do Supremo Tribunal Federal é, mais do que
ignorância histórica, um patente atentado contra suas próprias liberdades.
Infelizmente, no momento o país assiste atônito ao crescimento dessas
conjecturas. Celebra-se a estupidez orgulhosa como se ela fosse a salvação.

Do ponto de
vista qualitativo, o direito de reunião em locais públicos para manifestações
populares denota um nível elevado de robustez democrática. Expor as mazelas
sociais, denunciar as omissões das autoridades ou descalabros diversos são
deveres de todo cidadão que deseje uma gestão eficiente, pautada na prevalência
do interesse público. Por isso é comum que a população saia às ruas agitando
bandeiras pelo fim da corrupção ou por melhorias na educação e na saúde. Nada
mais natural e compreensível, principalmente se tratando de um país tão desigual
como o Brasil. Até aí, nada alarmante.

O que
realmente chama a atenção é quando uma determinada parcela da população
manifesta desejos nitidamente antidemocráticos e prejudiciais à estabilidade
institucional do país. Convictos de que a soberania popular — que pauta o poder
do povo para o povo — deveria proteger seus interesses mesquinhos, esse considerável
nicho social cria um conceito próprio e deturpado de democracia, no qual os poderes
seriam reunidos nas mãos de um ídolo salvador. Em consequência, há uma
“demonização” de instituições como a Suprema Corte e o Congresso Nacional,
tidos como inimigos da população. Por trás desse tipo de pensamento simplista e
simplório, esconde-se uma sádica vontade de voltar aos tempos sombrios do
regime militar.

Nada
explica melhor esse naipe de movimento que a cegueira do fanatismo. Ao mirar em
dias melhores e ao mesmo tempo desejar um ato institucional que as prive de suas
próprias liberdades, as pessoas que assim pensam entram em um paradoxo
automutilatório, no qual elas seriam as próprias vítimas dos malefícios
provenientes da realização de seus desejos. A história, como se sabe, é cíclica
nesse sentido, e na nossa não faltam períodos que deveriam funcionar como lições
para jamais repeti-la. Por isso é fundamental ter a noção de que não existem
soluções mágicas nem heróis redentores que vão (re)colocar o Brasil nos trilhos
do triunfo. Acreditar nessa utopia é de uma ingenuidade limítrofe da
infantilidade.

Nossa
realidade às vezes parece mesmo um conto naturalista dos mais escabrosos. A
princípio um pequeno grupo, indesejado em manifestações políticas, os que
desejam um “autogolpe” hoje já não mais precisam se esconder. Caminham
tranquilamente pelas ruas, ostentando faixas lamentáveis, causando sentimentos antagônicos
de espanto, repúdio e pena. O AI-5 de 1968 marcou o período de chumbo da
ditadura. A censura, o exílio, a tortura, a perda compulsória de mandatos e
tantas outras atrocidades ocorreram justamente nesse período. Ao mesmo tempo,
fechar o Congresso significaria eliminar as eleições diretas. Ter saudades dessa
época é desconhecer a própria história, ignorar os próprios direitos e flertar
com uma ditadura por puro revanchismo inconsequente.

No
naturalismo presente no romance-tese “O Cortiço”, de Aluísio de Azevedo, há uma
animalização dos personagens em contraposição a uma humanização do local de
moradias. O cortiço seria um organismo dotado de vida, porque as pessoas ali se
mostram desnudas em um realismo exacerbado que denota o que nelas há de pior.
Os aspectos negativos são valorizados em uma perspectiva determinista bastante
tormentosa. Ao se analisar a conjuntura de pedidos contidos nas faixas de
algumas manifestações ocorridas no país, o sentimento é de se estar vivenciando
exatamente uma experiência naturalista em tempo real, em uma realidade crua e
desanimadora.

Ainda que
existam problemas reais no Congresso e críticas merecidas ao STF, fechá-los não
é uma solução democrática. Uma sociedade que se preze como pluralista deve se
orientar, sim, pelos postulados da soberania popular, desde que suas vontades
sejam em benefício de todos — e não em seu prejuízo. O direito à manifestação
nas ruas, independente de suas pautas, é pilar de uma comunidade consciente. Porém
entoar chavões enamorados de preceitos ditatoriais e que pretendam conceder
poderes supremos a um ser falível é caminhar a passos largos para o retrocesso
— se não para o abismo.

Não nos enganemos: uma democracia pode começar a desmoronar a partir da ressonância das opiniões de alguns lunáticos. E ficar atento a isso é, antes de tudo, uma defesa de nossa própria existência.

A era dos ídolos estúpidos e dos cérebros ocos (quando uma democracia morre, ela morre para todos) publicado primeiro em https://www.revistabula.com



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