domingo, 5 de janeiro de 2020

Nunca roubei nem matei um homem. Mas, já tive vontade

Nunca roubei nem matei um homem. Mas, já tive vontade

Detesto
malas. Em especial, detesto malas com rodinhas. O barulho delas no assoalho da
casa dá-me nos nervos. Quase sempre, dizem-me da saudade, dos adeuses, dos olhos
marejados, das áreas mentais sujeitas a turbulência, da náusea que me deixa aéreo.
Sofro certas neuroses que não resistem a uma porção de pão-de-queijo com café na
praça de alimentação de um aeroporto. Cobram os olhos da cara pelos tradicionais
biscoitos de Minas nessas biroscas aeroportuárias. Os comerciantes dizem que a culpa
é da Infraero, que faz os seus fígados sangrarem todo dia 30. Pagar aluguel é broca.
É a presença pesada, intangível, de um sujeito ou de uma entidade com um baita patrimônio
material, que fatura horrores, colocando o vil metal para trabalhar por ele. Tempo
não é dinheiro. Tempo é a vida escapando entre os dedos, por mais que se ganhe
dinheiro.

Deixar
Julia no aeroporto sempre foi e sempre será uma tarefa incômoda. Odiamos as despedidas.
Nisso somos parecidos. É desagradável quando ela desaparece do meu campo visual,
na curva da fila do embarque. Hora de cair fora e morrer em escandalosos trinta
pilas cobrados pelos gangsteres que gerenciam um estacionamento onde vozes cínicas,
metálicas, engolem tíquetes com códigos de barra e nos desejam um “Volte sempre”.
A gente acaba sempre voltando para estacionar naquela joça, por pura falta de opção.

A
cada dia que passa, gosto mais dos extremos da vida: crianças e velhos. Penso
que seja pela franqueza. A humanidade anda tão intragável quanto um suco de
laranja em Guarulhos. Não vou pagar trinta paus numa garrafinha de suco de
laranja. Nem fodendo. Tenho o péssimo hábito de xingar, sim, eu sei e não peço
desculpas. Talvez, justamente por isso, ainda não tenha enfartado. Ah, se eu
fumasse… Se eu fumasse, o cigarro me tragava até a guimba. Tenho muito brasa
ardendo na cabeça, podem crer.

Neste
instante, serei forçado a abrir o dicionário. Não estou certo de como se escreve
a palavra “reveion”. Agora, sim. A noite do réveillon saiu-me melhor do que a
encomenda: estive longe das multidões empolgadas. Sacrificamos uma jovem leitoa,
sem requintes de crueldade; socamos uma maçã argentina na sua boca; enfiamos no
forno e chupamos as costelas, a estalar os beiços, a tomar vinho, a ouvir as canções
que a gente mesmo escolhia. Nada de DJs sarados mandando na nossa trilha sonora.
Festa de revenhon, ou melhor, festa de réveillon é quase sempre um pé no saco. Confraternizar
nunca foi o meu forte, ainda mais, com estranhos. Típica conduta antissocial? Talvez.
Na dúvida, não me convide para o seu funeral.

Inauguramos
uma caixa de som supimpa que o Papai Noel comprou na Macy’s, parcelada em seis
vezes no cartão. Ela mede o tamanho do sapato de uma mulher, não possui fio, cabo
ou pilhas, e ainda por cima reproduz um som límpido e potente. Parece coisa do
demônio, mas, é fabricada pela JBL mesmo. Tamanho não é documento. Faz anos que
digo isso para a minha esposa. Ela enche as taças e ri desbragadamente. Amo aquela
safada.

Fico
menos rabugento quando etilizado. É como se a felicidade, finalmente, saísse do
armário. A parte ruim foi que não havia crianças na festa. Quem dominava a
resenha era o Naldinho, um velhote de noventa e quatro anos, que tinha deserdado
durante a guerra, antes da tomada de Monte Castelo: “Não vou atirar em ninguém nessa
merda”. Estava casado pela quinta vez. Perguntei a ele qual era o segredo para
liquidar as esposas sem ir pra cadeia. Ninguém riu da piada. A primeira tinha
morrido de parto; a segunda, de câncer; a terceira pulou da Ponte Rio-Niterói e
a quarta sucumbiu de causas naturais ao atravessar uma avenida movimentada fora
da faixa de pedestres. Pipocaram os fogos de artifício. Neste ponto, sou meio
canino: odeio os foguetórios. As taças foram erguidas em brindes para-lá-de-Bagdá.
O ano prometia ser a mesma droga de sempre, mesmo assim, todos estavam
otimistas. Bêbados e otimistas.

Como
eu já disse, gosto muito de conversar com gente idosa, desde que o assunto não
sejam os intestinos soltos e as planilhas em Excel para se tomar pílulas. O que
não tem remédio, remediado está. Fica-se velho e ponto. Quem nunca morreu acaba
morrendo. Vão reclamar com o Papa e acabarão estapeados. Tomado de álcool até os
ossos, Naldinho estava mais carismático do que o normal, contando mentiras e inventando
verdades a respeito da sua mocidade, quando comia carne de caça crua e perdia a
vida como maquinista na região da estrada de ferro.

Contou
a história de um sujeito que tinha lhe causado enorme prejuízo financeiro, de
forma premeditada, levando-o à bancarrota, durante a ditadura militar no país. Empolgado,
escumando pelos cantos da boca, Naldinho teorizou que dinheiro não fazia grande
diferença na vida de um ser humano, naquela altura em que se está prestes a realizar
a famigerada grande travessia. “Não quero atravessar porcaria nenhuma. Sirvam-me
mais merlot”.

Quem
morre de véspera é peru. Naldinho confidenciou que nunca tinha roubado nem
matado um homem, mas, já tinha sentido vontade. Mijamos de rir. Sabíamos que era
galhofa. Lola saiu debaixo do sofá, deu as caras, reapareceu após o show de pirotecnia
e foi se aninhar nos pés do Naldinho. Os cães sabem das coisas, inclusive, que
não podem confiar piamente nos seres humanos. Porque não somos canídeos, a
gente ri das próprias mazelas, embriaga-se com vinho e sente aquela baita esperança
de que dias os melhores virão.

Nunca roubei nem matei um homem. Mas, já tive vontade publicado primeiro em https://www.revistabula.com



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