A maior evidência dos apuros em que se encontra o país
está na adoção cega e irrestrita de um dos polos da política atual. O bom senso
dá lugar à aversão pelo contrário e o embate de argumentos cede espaço à troca
gratuita de farpas. A alienação é, talvez, um dos grandes legados negativos de
toda essa polarização tensa no Brasil, o que leva à reflexão sobre algo que
deveria ser bastante evidente: é possível não gostar de Lula nem de Bolsonaro
ao mesmo tempo.
Falar em Lula ou em Jair Bolsonaro é mexer com
paixões. Na maioria dos casos, o que se vê é a racionalidade sendo deixada de
lado em favor da admiração e confiança inabaláveis que a histeria coletiva costuma
adotar em cada caso. A biografia dos dois, aos respectivos fãs, parece ungida e
imaculada; não há questionamento de seus atos ou discursos falhos, já que
traições ideológicas seriam o comburente necessário para o outro medrar. Esse confronto
de torcidas vem arranhando qualquer tentativa de convivência pacífica no país,
e a radicalização assume um protagonismo tão escancarado quanto arrebatador.
Não há dúvida de que o princípio essencial dessa luta
sem vencedores seja a retroalimentação mútua. Bolsonaristas e lulistas,
necessariamente, precisam de seus opostos para sobreviver. Não há, pois,
interesse no desaparecimento das forças contrárias, já que é justamente na
justaposição dos extremos que surge o endeusamento de cada um. Ao terem suas
atitudes comparadas, o filtro da repulsa — por meio do proposital exagero dos
defeitos alheios — serve de cabo eleitoral infalível. Mexer com o medo das
pessoas virou um grande comércio político, no qual os dois lados saem ganhando.
Lula, com certeza, vibra com a fala destemperada de
Jair Bolsonaro. É desse palanque que ele precisa para colocar o conceito de
democracia debaixo do braço e se autoproclamar defensor dos direitos humanos e
caridoso protetor dos vulneráveis. Ao mesmo tempo, Bolsonaro tem um grande
trunfo ao expor um Lula livre, mas radical. Para o capitão reformado, o eterno
fantasma da volta do desafeto, ainda que inelegível, é um meio imprescindível para
recompor sua capilaridade política e colocar-se como bastião da luta contra a
corrupção. Um acaba sendo o malvado favorito do outro. De algum jeito, ambos
saem mais fortes.
No entanto, é óbvio que não há um equilíbrio verdadeiro
nesse xadrez político, já que apenas os próprios ícones saem ilesos. Enquanto
os eleitores fascinados se digladiam na defesa de seus heróis, a qualidade do
debate escoa pelo ralo, não havendo de nenhuma parte qualquer interesse pelo
fim desse dilúvio destrutivo. Amizades são desfeitas, famílias entram em
parafuso ideológico e não há a menor parcimônia em nenhum dos lados, fazendo
com que a poliarquia se torne um sonho dos mais distantes. Como no messianismo
do filme “Deus e o Diabo na Terra do Sol”, a exploração da miséria é mais
importante que sua solução de fato. E o jogo de marionetes é o pilar focal dos
olhos de ambos.
Veja bem: Lula e Bolsonaro têm mesmo algumas vidraças simbióticas
em comum. Enquanto presidente da República, Lula, sob a égide da diplomacia e
dos interesses econômicos, apoiava e se reunia com os mais diversos ditadores, tais
como Muammar Kadafi, Mahmoud Ahmadinejad e Teodoro Obiang. Bolsonaro, que já
homenageou ditadores mortos como Stroessner e Pinochet, faz o mesmo com Viktor
Orbán, o príncipe herdeiro saudita Mohammed bin Salman e o presidente chinês Xi
Jinping. Além disso, sempre que pode, ameniza os absurdos ocorridos no regime
militar brasileiro e, desde quando não passava de um integrante do “baixo
clero” do Congresso, costumava soltar rojões no dia 31 de março — aniversário
do início da ditadura no país. Para cada pedalinho com nome de neto em um
sítio, há um chocolate com laranja ou uma “rachadinha” correspondente.
É óbvio que, na adoção de um ou de outro como patrono
dos bons valores, não há vencedores entre os do povo, apenas lucro para os
próprios “messias” populistas. A polarização é interessante para ambos e, no
pior dos cenários, acaba servindo de condição de existência de suas próprias qualidades.
Nessa trágica comédia da vida política nacional, ter senso crítico talvez
signifique desprezar ambos em favor da própria saúde mental e da saudável
convivência.
No fim das contas, não gostar de Bolsonaro nem de Lula
não é uma contradição em si. É, antes de tudo, um grito de liberdade. Entre
mortos e feridos, salvam-se os iconoclastas.
Imbecilização coletiva (o que não sabem é que é possível não gostar de Lula e de Bolsonaro ao mesmo tempo) publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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