terça-feira, 7 de janeiro de 2020

Abandonar um animal indefeso é deixar claro que o poço da covardia não tem fundo

Abandonar um animal indefeso é deixar claro que o poço da covardia não tem fundo

A relação entre humanos e animais sempre foi um tanto
desproporcional. Apesar de os homens terem o dom da comunicação e da
racionalidade, há quem se utilize dessa superioridade para cometer os mais
diversos abusos contra seres totalmente indefesos. Dentre tantos absurdos,
talvez o abandono seja um dos mais condenáveis, dado o potencial de crueldade
contido nesse ato — o que torna bastante questionável a humanidade de quem o
pratica.

No Direito brasileiro, particularmente, os animais sempre foram tratados como coisas. Não seriam sujeitos de direito e, mesmo possuindo regramento próprio, nos casos não legislados prevaleceriam as normas aplicáveis a objetos. Para se ter uma noção, no Direito alemão os animais são tratados como um terceiro gênero à parte, e não tidos como coisas que se movem (do alemão, “Tiere sind keine Sachen”). No Brasil, apenas em 2019 um projeto no Senado pautou a questão de forma séria, considerando os animais como seres sencientes. Essa falta de empatia diz muito sobre o descaso com que a nossa sociedade trata esses seres vivos.

Levando ao pé da letra essa forma de ver o mundo, algumas
pessoas têm a exata impressão de que os animais são simples semoventes que
existem para servi-los. Por essa razão, além dos casos odiosos de maus-tratos,
são constantes os de abandono de animais, uma situação criminosa — e silenciosa
— que afeta os núcleos dos lares brasileiros e agride seres vivos que não têm
ao menos a opção de reagir. Tratados como objetos para o deleite de seus donos,
a partir do momento em que não têm mais a serventia que lhes era atribuída, são
despejados para a rua, sofrendo com abusos de transeuntes, calor, frio, fome,
sede e desnutrição.

A maldade dessa atitude parece passar despercebida,
talvez pela falta de uma análise mais detida do seu contexto. Os animais se
apegam aos donos e aos lares, em uma relação de dependência claramente sentida
pelo bicho nas mais diversas situações cotidianas. Para desespero dos pobres
errantes, as situações mais frequentes de abandono envolvem os momentos em que
eles mais precisam de cuidados, ou seja: na sua senilidade, na doença ou por
algum distúrbio em seu comportamento. Paradoxalmente, os animais são justamente
aqueles que estão sempre ao lado dos donos nos períodos mais complicados. Não é
difícil achar registro daqueles que visitam até o túmulo dos falecidos.

O amor do animal pelo ser humano é algo difícil de
explicar, e beira a incondicionalidade. Por não serem dotados da mesma
racionalidade, os pobres bichos seguem uma rotina de apego e docilidade, mesmo
quando são maltratados. Abandonar abruptamente um ser que apenas retribui o
abrigo e alimentação com companhia e carinho talvez seja a forma mais
repugnante de demonstrar a fragilidade humana quanto ao seu próprio senso de
compaixão para com o próximo. Com a dádiva da vida, o homem também recebeu um
defeito cruel: o apego à utilidade. Na maioria das vezes, só se quer o bônus
dos tempos áureos dos animais, sem os ônus dos períodos mais sofridos.

Um caso chocante que ganhou notoriedade nos últimos
dias foi o de uma senhora que parou o carro na rua e ali abandonou seu cão, devido
ao fato de o animal ter uma deficiência nas pernas dianteiras. O ocorrido foi
flagrado por câmeras de rua, em uma cena tão comovente quanto asquerosa. A
crueldade da situação foi ampliada pelo fato de haver outro cachorro com ela no
momento — obviamente, saudável e “útil” —, enquanto o abandonado, desesperado, tentava
voltar para o carro, sendo empurrado pela mulher. Uma situação triste, lamentável
e absurda, que demonstra o quanto os humanos podem ser repulsivamente cruéis
com outros seres vivos que compartilham com eles do mesmo mundo.

É preciso ressaltar que o abandono de animais é crime
previsto em lei. Além disso, a Declaração Universal dos Direitos dos Animais,
da UNESCO, considera, em seu preâmbulo, que todo animal possui direitos.
Sabe-se que, na maioria das vezes, as leis são letra morta diante da ignorância
de donos irresponsáveis, havendo a necessidade de campanhas de conscientização para
tentar evitar as vistas grossas que a sociedade faz para esse tipo de crime.
Abandonar um ser inocente para definhar na solidão não é apenas um ato de
maldade; é uma prova incontestável de que a crueldade humana não tem limites. E
também que o poço talvez nem mesmo tenha fundo.

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