quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

O pior livro da década

O pior livro da década

Os livros de autoajuda costumam ser criticados por
talvez não cumprirem o papel a que se propõem e por propagarem uma notável
alienação literária. Injustiças à parte, existem no mercado bons autores e
obras nesse segmento, bastante consolidado, que costuma figurar no topo das
listas de mais vendidos. Dentre os brasileiros, um deles chama atenção pela
alta tiragem e por seu inquietante título: SEJA FODA!, de Caio Carneiro. As
surpresas positivas, no entanto, não vão além de sua chamativa capa.

O livro tem 205 páginas escritas, das quais nada menos
que 72 trazem apenas um fundo preto contendo frases autorais (?) centralizadas,
como mantras. Além das orações soltas, há 7 páginas com grandes interrogações
brancas, e uma outra com uma mão desenhada que ilustra o que ele chama de
pilares do sucesso — impossível ser mais clichê. Ou seja, metade do livro é um
oco absoluto, que visa apenas destacar ementas diminutas do que já foi exposto
ao leitor. Pergunta-se: quantas pobres árvores deixaram de existir para que um best-seller
como esse pudesse chegar ao seu número de vendas, sendo boa parte das páginas
desprovidas de conteúdo?

O prólogo do livro, que tem exatas 35 páginas, é na
verdade um artifício para fazê-lo render. Nesse um quarto do total (e quase
metade da obra realmente escrita), há uma preparação explicativa sobre o que virá
mais adiante. Apresenta-se, a partir dali, uma profusão metalinguística sem o
menor sentido aparente, cujos parágrafos únicos ocupam, em sua maioria, modestas
metades de página. Algumas passagens, com um português bastante peculiar, são
recheadas de frases rasas e travestidas de heterodoxas, como a curiosa “sucesso
é igual fidelidade: ele só aceita 100%” (sic).

Em sua busca ululante por motivar o leitor, o autor
transmite a percepção de que seguir os passos trilhados por pessoas de sucesso —
como ele próprio — é a chave para se tornar “FODA”. Sem detalhar de qual área
empreendedora faz parte, vende a ideia de que a veia criativa precisa ser
despertada e que o extraordinário se inicia com mudanças de mindset. Ele, que
de fato é uma pessoa de sucesso, parte da premissa de que sua experiência pessoal
pode ser uma fórmula genérica, aplicável a todos. Esquece-se, contudo, de que a
maioria da população, diferentemente dele, não nasceu em berço esplêndido e não
tem condições de, a seu exemplo, abandonar seu labor exaustivo para investir em
marketing multinível e alcançar seu cômodo patamar financeiro. Não sem
despencar em desgraça.

O livro é, com todo o respeito, um bocado mal escrito.
E não há nenhuma metodologia clara: em uma tentativa de construção não-linear,
o autor acaba por ser altamente redundante, trocando palavras comuns por
sinônimos mais eruditos, mas com a profundidade de uma poça de chuva. Ele, por
sinal, parece sentir um grande prazer em ser uma espécie de dicionário aleatório
encarnado. Em diversos momentos do livro, traduz distinções entre conceitos que
explica com pompa, como a diferença entre sucesso e significância, sonho e
delírio, empolgação e motivação, dentre outros, com o fito único de causar
impacto aparentando sabedoria.

Para os menos deslumbrados com frases de efeito, na
melhor das hipóteses fica a impressão de que tudo que foi escrito poderia ser
resumido em dez minutos de uma conversa qualquer. Não existe nada no livro que
não possa ser objetivamente colocado em um artigo de poucas páginas, construído
em uma noite de tédio. Na verdade, nem se pode dizer que haja uma coesão
textual, tendo em vista que — pasmem! — o autor sequer se dá ao luxo de
pormenorizar o sentido que teria cada uma das palavras que formam a sigla do
título. 

Sinteticamente, houve uma sacada genial em aproveitar um
grande momento de vida para engatar um best-seller infalível. O autor compilou
ideias vagas e desconexas, arrumou um desenho convidativo de capa, pensou em um
título estimulante e contou com seguidores fiéis, que compraram a ideia. Nesse
sentido, há que se tirar o chapéu para ele. Repisando concepções amplamente
batidas de outros livros do segmento, o autor construiu uma verdadeira quimera
e transformou sua vontade de escrever em uma vendagem incrível para os padrões
atuais.

E isso expõe duas conclusões não-excludentes: 1) o
autor tem uma mente brilhante, no sentido de ser capaz de transformar
oportunidades em vendas; e 2) a máxima “não julgue o livro pela capa” não é uma
verdade inflexível, pois SEJA FODA! está aí para ser gauche na vida. A fórmula
de sucesso que se pode extrair, no entanto, está longe de suas repetitivas
páginas: é a de que, no mundo literário atual, caso se tenha um bom marketing
por trás, é possível fazer sucesso com um livro cujo interesse se resuma ao
poder de atração de sua capa. Nesse aspecto, SEJA FODA! é indiscutivelmente vitorioso.
E também, para ser justo, uma das piores obras já feitas pelo homem.

O pior livro da década publicado primeiro em https://www.revistabula.com



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