Nunca achei que teria meu WhatsApp
clonado. Eu, no auge da minha arrogância e prepotência (friso: prepotência, e
não “potência”) — mestre em Computação, pós-doutor pela Universidade de
Harvard, escritor e professor de Inteligência Artificial, e outros blá blá blás
— achei que passaria ileso por mais um golpe. Ficava alertando meus pais e
minha avó para que nunca fornecessem dados pessoais. Deixava claro que não era
eu que de tempos em tempos aparecia chorando ao telefone, sequestrado por um
bandido ainda mais analfabeto do que esse outro “eu”. Mas, ingênuo e burro, caí
no golpe como um virgem que, ao conhecer as artimanhas dos corpos com uma
meretriz, é convencido por ela de que ele foi o melhor de todas as suas transas
(teoria econômica 1: conquistando um cliente fiel).
Logo depois de ter perdido o meu acesso ao
WhatsApp, iniciou-se uma batalha épica. De um lado, os exércitos dos “sem
concordância nominal e verbal” pedindo dinheiro aos meus amigos: “mim dá uma moral”, “fala broter”, “tá podeno fala”, “pó quebrá
essa pra mim”. Do outro, um neurótico-obsessivo desesperado — e com a vaidade e
a empáfia devastadas —, tentando avisar os contatos que não estava tão ferrado
assim — que não depositassem nada para ninguém. (Sofro pensando em algumas respostas
que os bandidos poderiam ter recebido: “Jacques, seu babaca, brochou comigo e
ainda quer que eu pague?” ou “Adorei a nossa noite, quero repeteco, mas não
acho que vale esses R$ 1.000,00 que está pedindo”).
O duelo se estendeu por algumas horas.
Nesse período, imagino os bandidos excitados e sorridentes, debochando dos
energúmenos que tinham lido centenas de livros com “muitas coisas escritas”, terem
doutorados e até um pós-doc em Harvard, mas que eram capazes de cair nesse
golpe imbecil —; e o coitado do escritor, com a pressão arterial no Everest, e
grande dificuldade para respirar durante o desarranjo intestinal que se
estendeu durante o ocorrido.
Depois desse stress convulsivante, imaginei
que poderia ter sido clonado por alguém mais curioso. Alguém que estudaria meu
histórico, se aprofundaria nas minhas angústias e nos meus desencontros, e
resolvesse ajudar (nesse caso, eu mesmo te “daria uma moral”). Enquanto eu
estivesse bloqueado (ainda estou), ele espalharia poemas e versos para as
meninas que me rejeitaram. Ele as abordaria com palavras mágicas, encantadoras,
despretensiosas, mas ao mesmo tempo tocantes e irrecusáveis — muito diferente
das minhas que geraram repulsa e silêncio. Ele também enviaria originais — em
todas as línguas — para editores que nunca me responderam. O novo livro teria tanto
requinte e esmero que seria aceito de pronto, sem críticas ou revisões — e já
até teria recebido um depósito de adiantamento. Ele, o já meu querido bandido,
bem que poderia ter resgatado aquele amor perdido. Poderia ter criado um
estratagema tão genial e inconcebível, que a ex-amante, mesmo ausente e
raivosa, me aceitasse de volta, agora com um furor maior e ainda desconhecido
pelo pobre escritor. Ah, meu bandido amigo, como eu teria gostado de ser
clonado por você…
No conto “A Memória de Shakespeare”, do
escritor Jorge Luis Borges, o personagem Hermann Soergel, especialista na obra
de Shakespeare, escuta em um congresso a lenda de que um mendigo possuía o anel
de Salomão, e que, por isso, teria o poder de entender a língua dos pássaros. Um
outro pesquisador, Daniel Thorpe, afirma que a lenda é verdadeira, e, inclusive
ele mesmo, Thorpe, possuía uma dádiva tão grandiosa quanto a do mendigo: a
memória completa de William Shakespeare. Thorpe a transfere para Soergel (a
versão do meu “bandido amigo”) — e o conto nos mostra a beleza e a maldição
desse fabuloso presente.
Se de fato o meu sonho se realizar, creio
que quando recuperar meu WhatsApp vou ter grandes problemas. Sim, minha conta
estará recheada com o dinheiro dos meus originais vendidos, e mensagens de
entrevistas e reportagens estarão apitando no meu aplicativo (olha a vaidade,
que me levou ao fundo do poço, se manifestando de novo). Mas, por conta dos
versos enviados pelo bandido amigo, estarei vivendo uma poligamia agitada (já
sinto até a angústia de ter que administrar essa balbúrdia — isso sim é uma
balbúrdia!). Além disso, as “novas” expectativas quanto a minha performance
estarão tão elevadas que serão impossíveis de serem preenchidas. Uma confusão
de sentimentos, uma desordem de memórias, um pandemônio lembranças que não
saberei lidar — assim como Soergel: “O acaso ou o destino deram a Shakespeare
as triviais coisas terríveis que todo homem conhece; ele soube transmutá-las em
fábulas, em personagens muito mais vividos que o homem cinza que sonhou com
eles”. Por favor, maldito bandido, eu te imploro: não faça nada disso.
Confesso que estou aliviado por saber que,
até agora, nenhuma ex e nenhum editor me procurou — e que ninguém fez algum
depósito para “mim”. Mas, preciso confidenciar um pequeno segredo: apesar do
alívio, restou um fiozinho de ressentimento por vocês, meus supostos amigos,
não terem depositado nadinha em “minha” conta. Poxa, “brother”, “eu” juro que estava
realmente precisando dessa moral.
WhatsApp clonado publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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