Não é uma fábula. Mas deve-se começar assim: era uma vez… Emily Dickinson. Quem? Simplesmente: a maior poeta dos Estados Unidos, a deusa, ao lado de Walt Whitman, o deus, o pai-fundador. O crítico literário Harold Bloom a percebe como uma espécie de Shakespeare dos Estados Unidos. Era mais: era Emily Dickinson, um gênio que não publicou dez poemas em vida. Mas deixou, guardadinhos, quase 2 mil poemas — a maioria de alta qualidade. Num poema, bardou, em tradução de Aíla de Oliveira Gomes:
Esta, minha carta para o mundo,
Que nunca escreveu para mim —
Simples novas que a Natureza
Contou com terna nobreza.
Sua mensagem, eu a confio
A mãos que nunca vou ver —
Por causa dela — gente minha —
Julgai-me com bem-querer.
Por que Emily Dickinson publicou tão pouco, sabendo de seu imenso talento? Talvez porque percebeu que não seria muito bem compreendida — e, claro, era mulher, num tempo de hegemonia dos homens. Há um belo poema de sua autoria (tradução de Aíla de Oliveira Gomes) que assinala:
Eu sou Ninguém. E você?
É Ninguém também?
Formamos par, hein?
Segredo — Ou mandam-nos p’ro degredo.
Que enfadonho ser alguém!
Tão público — como o sapo
Coaxando seu nome, dia vai, dia vem
Para um boquiaberto charco.
Emily Dickinson nasceu em 1830 (há 189 anos) e morreu em 1886 (há 133 anos). Nasceu e, claro, não morreu: tornou-se eterna. É lida praticamente em todo o mundo. Sua fortuna crítica só cresce.
Escolher dez poemas é uma temeridade. Porque a poeta tem grandes poemas — alguns considerados muito mais importantes do que os listados. Mas listas são assim mesmo: lacunares e, sempre, idiossincráticas. Os leitores brasileiros têm sorte, muita sorte, pois contam com excelentes traduções de Adalberto Müller, Manuel Bandeira, Augusto de Campos, José Lira, Aíla de Oliveira Gomes, Idelma Ribeiro de Faria, Paulo Henriques Britto e vários outros. Emily Dickinson deixou poemas sobre o Brasil, traduzidos por José Lira e Aíla de Oliveira Gomes. Uma tradução de Aíla de Oliveira Gomes:
Foi só aquilo que pedi.
E nada mais me era negado;
Ofereci o Ser por isto.
O Mercador sorriu com enfado: Brazil?
Fez girar um botão
(Sem nem sequer me olhar!)
“Mas, Madame, nada mais, hoje,
Do que temos, vai-lhe agradar?”
Uma tradução de José Lira:
Borboletas assim se veem
Nos Pampas do Brasil —
Ao meio-dia — só — e acaba
A Amável Permissão —
Sabores assim — vêm e voltam —
Depois de dar-se — a Ti —
Como Estrelas — que viste à Noite —
Estranhas — de Manhã.
1
Não viverei em vão, se puder
Salvar de partir-se um coração,
Se eu puder aliviar uma vida
Sofrida, ou abrandar uma dor,
Ou ajudar exangue passarinho
A subir de novo ao ninho —
Não viverei em vão.
2
Dizer toda a Verdade
— em modo oblíquo —
No circunlóquio, o êxito:
Brilha demais p’ra nosso enfermo gozo
O seu sublime susto.
Como a meninos se explica o relâmpago
De modo a sossegá-los —
A Verdade há de deslumbrar aos poucos
Os homens — p’ra não cegá-los.
3
Publicar — é o Leilão
Da nossa Mente —
Pobreza — uma razão
De algo tão deprimente
Mas Nós — antes, em Greve,
Da Mansarda ir, sem cor,
Branca — Ao Branco Criador —
Que investir — Nossa Neve —
A Ele e o nosso Pensamento
Pertence — a Ele Que encomenda
Sua ilustração Corpórea — a Venda
Do Real Alento —
Mercar, sim — o que emana
Do Celeste Endereço —
Sem reduzir a Alma Humana
À Desgraça do Preço —
4
Não sou Ninguém! Quem é você?
Ninguém — Também?
Então somos um par?
Não conte! Podem espalhar!
Que triste — ser — Alguém!
Que pública — a Fama —
Dizer seu nome — como a Rã —
Para as palmas da Lama!
5
O Cérebro — é mais amplo do que o Céu —
Pois — colocai-os lado a lado —
Um o outro irá conter
Facilmente — e a Vós — também —
O Cérebro é mais fundo do que o mar —
Pois — considerai-os — Azul e Azul —
Um o outro irá absorver —
Como as Esponjas — à Água — fazem —
O Cérebro é apenas o peso de Deus —
Pois — Pesai-os — Grama a Grama —
E eles só irão diferir — e tal acontecer —
Como a Sílaba do Som —
6
Nunca me senti em Casa — Cá em baixo —
E nos Aprazíveis Céus
Não me sentirei em Casa — eu sei —
Eu não gosto do Paraíso —
Porque é Domingo — sempre —
E o Recreio — nunca chega —
E o Éden serão solitárias
Claras Tardes de Quarta-feira —
Se, ao menos, Deus fizesse visitas —
Ou Sestas —
E deixasse de nos ver — mas dizem
Que Ele — por seu um Telescópio
Perpétuo nos olha —
Eu própria fugiria
D’Ele — e do Espírito Santo — e de Todos —
Não fosse o “Juízo Final”!
7
O sucesso é muito mais doce
Para quem não o pode alcançar.
O que faz compreender um néctar
É a sede e o anseio de o provar.
Ninguém desta hoste purpúrea
Que hoje empunhou o pavilhão
Dará acerca da vitória
Mais perfeita definição
Do que ele, o vencido, — em agonia —
Sentindo irromper nos ouvidos
Os sons do triunfo: distantes
Porém claros, martirizantes.
8
Dizem que “o Tempo tudo cura” —
Mas o certo é que não —
A dor que é dor fica mais rija
Como velho Tendão —
O Tempo é Teste de Tormentos —
Não Remédio afinal —
Se algo isso prova, também prova
Que não havia Mal —
9
Não tive tempo para o ódio
Porque
Vivia a cova a me esperar —
E a vida não me foi tão longa
Que eu
Pudesse as rixas acabar —
Nem para o amor eu tive tempo —
Já que
Muito de mim tinha que dar —
O vão labor que o amor pedia
Achei
Duro demais para aguentar —
10
Morri pela Beleza, mas na tumba
Mal me tinha acomodado
Quando outro, que morreu pela Verdade,
Puseram na tumba ao lado.
Baixinho perguntou por que eu morrera.
Repliquei, “Pela Beleza” —
“E eu, pela Verdade” — ambas a mesma —
E nós, irmãos com certeza.
Como parentes que pernoitam juntos,
De um quarto a outro conversamos —
Até que o musgo alcançou nossos lábios
E encobriu os nossos nomes.
Livros de onde foram colhidos os poemas
1 — Uma Centena de Poemas, Emily Dickinson. T. A. Queiroz, Editor. 1985. Tradução de Aíla de Oliveira Gomes
2 — Poemas, de Emily Dickinson. Editora Hucitec. 1991. Tradução de Idelma Ribeiro de Faria.
3 — Alguns Poemas, de Emily Dickinson. Editora Iluminuras. 2006. Tradução de José Lira.
4 — Não Sou Ninguém — Poemas, de Emily Dickinson. Editora Unicamp. 2008. Tradução de Augusto de Campos.
Traduções dos poemas
1 — Tradução de Aíla de Oliveira Gomes.
2 — Tradução de Aíla de Oliveira Gomes.
3 — Tradução de Augusto de Campos
4 — Tradução de Augusto de Campos.
5 — Tradução de Cecília Rego Pinheiro.
6 — Tradução de Cecília Rego Pinheiro.
7 — Tradução de Idelma Ribeiro de Faria.
8 — Tradução de José Lira.
9 — Tradução de José Lira.
10 — Tradução de Aíla de Oliveira Gomes.
10 poemas de Emily Dickinson para ler antes de morrer publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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