É
isto. O papel que me suporte agora. Os dedos tremulam a falta, e a verborragia
me parece um bom remédio. Tenho um dicionário inteiro pulsando ao espeque de
meus tristes olhos. Palavras avulsas que quero usar — mas não sei — como também
não o sabem meus órgãos: desfragmentados, soltos, por isso hemorrágicos. Gosto
de palavrar, e — ainda assim — as palavras todas me soam burras, inadequadas ou
fugidias. Misturo-as numa caldeira sanguinolenta e sanguinária e jorro neste
papel a presença da ausência.
Tento
me regozijar com o fato de que você já esteve aqui, mas isso só traz cólera e
veneno. Antes não tivesse estado. Antes jamais tivesse me afundado nessa mescla
de seda, e perfume, e faca, e fogo. Antes eu tivesse saído de perto, porque
descobri a aniquiladora imortalidade em você. A imoralidade da imortalidade:
talvez seja um bom livro. Ponho-me a ver o mundo por seus ângulos, numa vã
tentativa de renascer sua brasa em mim, mas são todos tão retos e eu, tão
obtusa. Não tenho matéria-prima, não tenho sagacidade, não tenho verve, nem
vida, nem chama, nem luz. Você juntou tudo e se foi. Mas não se foi.
Sou
oca, brigo com as fotografias: se as vejo, me trazem você de volta em um
delírio postiço; se não as vejo, seu fantasma me persegue em rosto disforme,
sinto que o perco e, perdendo, você se funde esmigalhado a outras lembranças de
poço. Largo sua cara na gaveta. Depois a pego de novo, sorvendo-a e
desacatando-a, e devolvo à gaveta. E fecho a gaveta, e tranco a gaveta, e
destranco. Por fim, ponho sua cara abafada numa algibeira de qualquer das
minhas roupas.
Eu
perdi. Procuro roçar outras peles, procuro seus discursos em outras línguas,
mas o timbre de outros me irrita. Procuro seus movimentos de flamingo, seu
olhar ora afiado ora lânguido, e esbarro em olhares rasos de pires estúpidos.
Outro dia, vi uma centelha sua num poste: aquele sorriso de espírito parou-me
como uma âncora o faz com um transatlântico. Aproximei-me e o sorriso era um
descascado do poste. Enlouqueci.
Persigo passos, cravo a unha na carne até brotarem vermelhas lágrimas férreas, pulsando artérias gritantes. Minha pele formiga e borbulha a ausência, num bramido de abstinência. Sou um conjunto de ideias soltas, pequenos lagos que jamais se encontrarão, porque a chuva unificante evaporou-se. Lamento eu não ter armazenado mais água, mas eu sequer tinha pote.
Seguro
seus livros, roupas, óculos, loções. Eles o conjuram, enquanto quero
esconjurá-lo. Vou jogar tudo fora, então abro a boca e os engulo até que não
sobre nada. E sinto um átimo de gosto seu. Me deito, sorvendo. Durmo. Amanhã, o
papel que me suporte.
A insuportável presença de sua ausência publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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