domingo, 10 de novembro de 2019

O universo não conspira contra ninguém

O universo não conspira contra ninguém

Da cintura para
cima, andava anestesiado para a vida. Do umbigo para baixo, apenas as ereções
matinais, fisiológicas, cada vez mais esporádicas, desperdiçadas em estrondosas
rajadas de mijo contra a louça branca do sanitário. Em algum momento, tinha
perdido a capacidade de sentir prazer. Fez um esforço memorável, mas, não se lembrou
da última vez que chorou. Choros de raiva não contavam. Assistia a uma curiosa
reportagem na TV sobre a alta incidência de AVC (Acidente Vascular Cerebral),
doença vascular grave, muitas vezes fatal, que acomete o sistema neurológico. O
âncora do programa, que carregava mesmo um semblante triste e pesado como uma
âncora de navio, explicava os sinais e sintomas da doença, tintim por tintim,
fornecendo aos telespectadores dicas insuperáveis de como evitar o mal e como
proceder frente a um caso suspeito. A vítima carecia ser levada com urgência até
o hospital mais próximo, para receber cuidados imediatos de desentupimento dos
vasos com solução de aguarrás, evitando as sequelas, a morte e as famigeradas
piadas de humor negro.

Supunha gozar de
uma saúde de ferro. Isso, talvez, explicasse a frieza. Fazia tempo, encontrava-se
amortecido, desprovido de elã. Intuiu que, talvez, desapercebidamente, tivesse
ele próprio sido acometido por uma espécie ardilosa de AVC. Quem sabe, sofrera
uma minúscula trombose que danificou a região encefálica responsável pela
empatia; uma necrose fatídica, calada, irreversível, que apodrecera um
fragilíssimo seguimento do tecido neuronal, anulando para sempre a sensação de prazer.
Irritado com tais reflexões, desligou o aparelho e foi se sentar na varanda do
casebre cedido pela universidade, o qual dava para um quintal florido com plantas
carregadas de frutos. Acendeu um Jeronimo’s. Pensava melhor quando estava
fumando. Então, pensou. Era bom em se isolar e pensar. Quase não saía. Morava
só. Não tinha se casado. Não teve filhos. Melhor não tê-los. Recebia o auxílio
semanal de uma diligente e extrovertida diarista proveniente do Norte, que não
deixava as plantas morrerem de sede, nem a casa ser dominada pelos ratos, baratas
e outras pragas medonhas como a solidão.

O vigor das
plantas, sinceramente, não o comovia. Muito menos, as borboletas multicoloridas
e os passarinhos de bicos pontiagudos que pousavam nas plantas para sugar o
néctar, beber o sumo dos frutos e cagar para as suas aflições existenciais. O
canto da passarinhada ribombava num abissal silêncio interior. Possuía uma
mente brilhante que durante anos o conduzia por uma carreira coroada de êxitos,
atuando como professor titular numa das mais conceituadas faculdades de
mecatrônica do mundo. Havia pilhas de livros técnicos por toda parte. Nada de
um Neruda. Tornara-se um sujeito culto, de capacidade notória, reconhecida e
elogiada pelos seus pares. Entretanto, era uma lástima em matéria de
relacionamentos interpessoais. Não se dava com as pessoas. Sentia-se um
perseguido, um injustiçado, uma vítima de conspiração do universo. Brigou com
sua única irmã. Tinha rompido relações com os pais, sem justificativas
plausíveis. Não compareceu ao enterro do velho. Ficou sabendo da sua morte por
meio de um advogado que lhe trouxe papéis para assinar. Quando a mãe morreu,
acompanhou de longe a descida do esquife na garganta da terra. Tinha medo de
ser reconhecido, de ser flagrado num daqueles raros instantes de arrependimento
e amargura.

Passava dos 50. Não
dava para garantir que amasse a profissão de professor universitário. Não amava
nada, nem ninguém, nem coisa alguma. Era forte, pragmático, realista e, com
certeza, o mundo ao seu redor não reconhecia o seu real valor. Exercia o ofício
de professor por obrigação social, pelo futuro da nação e para garantir o próprio
sustento. Não se intuía triste. Não sabia ao certo qual sentimento sentir. Por
um instante, por um tolo instante, cogitou matar-se e dar números finais a uma
existência tão exitosa quanto vazia. Mas, não podia propiciar contentamento algum
a terceiros. Não ele, o “Professor de Gelo”, conforme um dos alunos escreveu,
às escondidas, na lousa da sala de aula.

Lembrou-se do
episódio ultrajante e teve um mal-estar súbito, um estremecimento interior
típico de descontentamento. Parecia evidente que a zona cerebral responsável
pelo rancor continuava intacta, operante, funcionando perfeitamente bem como um
motor de última geração cujo projeto tinha passado pelo crivo rigoroso da sua
prancheta de docente universitário, um cátedra inteligentíssimo, muito
capacitado, que tinha estudado, estudado, estudado bastante, por toda uma vida,
até se tornar um completo analfabeto em termos afetivos.

Apagou o cigarro. Decidiu
ir para a cama. Ganhava mais dormindo, ao invés de ficar pensando nesses tipos
de bobagens.

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