sábado, 23 de novembro de 2019

O Irlandês, de Martin Scorsese, é uma obra-prima

O Irlandês, de Martin Scorsese, é uma obra-prima

Paulo Francis dizia que cada jornal tinha pelo menos 315 críticos de cinema. Mudou: hoje todo mundo é crítico de cinema. Mas, brincadeira à parte, a crítica de cinema patropi tem um grau de excelência rara. A “Folha de S. Paulo” publicou um texto do “Times” sobre o filme “O Irlandês”, de Martin Scorsese, que comenta a parceria entre o diretor e os atores Roberto De Niro e Al Pacino, mas nada explica sobre a película — o que Luiz Carlos Merten e Inácio Araújo fazem com categoria. Antes de apontar as qualidades dos comentários de Luiz Carlos Merten e Inácio Araújo, um breve comentário sobre o livro “O Irlandês — Os Crimes de Frank Sheeran a Serviço da Máfia” (Seoman, 310 páginas, tradução de Drago), de Charles Brandt — que foi primeiro-suplente do procurador-geral do Estado do Delaware e é advogado.

Frank
“O Irlandês” Sheeran trabalhava para o presidente do Sindicato dos
Caminhoneiros, Jimmy Hoffa, um associado da Máfia. O Irlandês era aliado de
primeira hora de Hoffa. Mas acabou voltando-se contra seu protetor. “Virado”
por seu “padrinho” — o mafioso Russell “McGee” Bufalino.

O
Irlandês era um assassino profissional. Um matador. Hoffa, de aliado, começou a
falar demais e cometeu o desatino de ameaçar a Máfia. “Cada vez que abria a
boca, ele dizia algo sobre como iria expor a Máfia, e como iria varrer a Máfia
do sindicato. Ele até mesmo chegou a dizer que impediria a Máfia de utilizar o
fundo de pensão. Não consigo imaginar que certas pessoas tenham gostado de
saber que a sua galinha dos ovos de ouro seria morta, caso ele [Hoffa]
reassumisse a presidência [dos Caminhoneiros]”, relata o Irlandês. Ele chegou a
alertar o “amigo” de que corria perigo. Sem sucesso. Hoffa, segundo o
pistoleiro, havia levado a Máfia para o poderoso sindicato, “franqueando-lhe
acesso ao fundo de pensão. Jimmy me trouxera para o sindicato” por intermédio
“de Russell”.

Russell
“Russ” Bufalino mandou matar Hoffa porque, ao sair da prisão, ele queria voltar
ao comando do Sindicatos dos Caminhoneiros — cujo fundo de pensão era de 1
bilhão de dólares. Russ avisou Hoffa para deixar Frank Fitzsimmons na direção.
O sindicalista resistiu.

O
Irlandês lutou na Segunda Guerra Mundial, na Itália, e, fato raro, ficou em
combate durante 411 dias. O futuro mafioso integrava a 45ª Divisão de
Infantaria do Exército dos Estados Unidos.

Passemos
às críticas de Luiz Carlos Merten, do “Estadão”, e de Inácio Araújo, da “Folha
de S. Paulo”.

Crítica
de Luiz Carlos Merten

Merten
registra que “historiadores de crimes nos Estados Unidos dizem que o livro não
é confiável e que Sheeran é um mitômano”. O jornalista deixa de registrar que
outros críticos levam o autor, um pesquisador tido como criterioso, a sério.
Como “O Poderoso Chefão”, de Mario Puzo, o livro de Brandt não é excelente, mas
não é ruim. O filme “O Poderoso Chefão”, de Francis Ford Coppola, é muito
melhor que o romance homônimo — deu-lhe grandeza. Pode-se dizer que melhorou o
livro.

“A
História é boa”, diz Merten. E é mesmo, e estou falando do que há no livro. A
história da morte de Hoffa, assassinado pela Máfia, por mais que se tenha feito
livros e até filme a respeito, permanece nebulosa. Há histórias que nunca são
esclarecidas inteiramente, apesar de pesquisas exaustivas. É o caso das mortes
de Hoffa — sim, liquidado pela Máfia — do presidente dos Estados Unidos John
Kennedy. Brandt examinou toda a documentação e ouviu o Irlandês meticulosamente
— dando uma lógica ao crime. Lógica que alguns contestam, mas não colocam nada
igual no lugar. O ótimo Merten parece não perceber isto, quer dizer: há outras
histórias, mas a contada por Sheeran é a mais plausível e não parece falsa. Por
isso Scorsese baseou-se no livro de Brandt para contá-la num filme. No máximo,
o Irlandês exagera sua importância na Máfia, mas o resto é, digamos, verdade. A
verdade resulta de informações às vezes desencontradas — é uma síntese delas.
Talvez estejamos sempre roçando a verdade, mas nunca, em determinados casos,
encontrando-a integralmente.

“No
centro do filme”, aponta Merten, “está um enigma: o desaparecimento de Jimmy
Hoffa, o todo-poderoso presidente do Sindicato dos Caminhoneiros. Pacino é quem
faz o papel. São todos amigos: Frank [Robert De Niro], Jimmy, Russell Bufalino
(Joe Pesci). Amigos, amigos, negócios à parte. Hoffa prejudica negócios do
crime organizado. Torna-se uma ameaça que é preciso eliminar”. Mas como matar “o
segundo homem mais poderoso dos Estados Unidos” — atrás apenas do presidente da
República?

Pois
Russell Bufalino, o Russ, acredita que “nada é impossível”. Afinal, doze anos
antes, em 1963, o presidente John Kennedy havia sido assassinado, possivelmente
com a participação da Máfia — um “dedinho” que seja. Então, em 1975, a Máfia
liquidou o “inoportuno” Hoffa — que simplesmente desapareceu. Aos 62 anos.

Merten
observa, com propriedade, que “O Irlandês” é um “filme sobre velhos — que se
reúnem para validar e executar assassinatos, é sobre poder e dinheiro, amizade
e lealdade. Alguém, o próprio Scorsese, ou [Steve]  Zaillian [o roteirista], já disse que é sobre
laços dissolvendo-se na longa noite das almas, quando ocorrem todas as
traições”. Um trecho que, de tão bom, leva a assistir o filme.

 “Sendo um filme de velhos, é bom que o
espectador preste atenção no processo de envelhecimento de Niro, Pesci e
Pacino, e inversamente no rejuvenescimento do trio — e também Harvey Keitel,
que tem um papel importante no longa”, anota Merten. O crítico informa que
Scorsese recomendou a De Niro que visse filmes de gângsteres com o ator francês
Jean Gabin. Porque queria o mesmo tom de interpretação. “Isso talvez ajude a
entender por que ‘O Irlandês’ é mais meditativo que os demais filmes de
gângsteres do diretor. Olha o spoiler: a grande cena ocorre aos 45 do segundo
tempo. O encontro de Frank com a filha. Tudo em ‘O Irlandês’ leva até ali.”

Crítica
de Inácio Araújo

O
artigo “Obra-Prima de Scorsese, ‘O Irlandês’ o revela como um anti-Coppola”, de
Inácio Araújo, toca num ponto crucial: nem todos os grandes filmes sobre a
Máfia são filhos de “O Poderoso Chefão”.

Noutros
filmes, pontua Inácio Araújo, Scorsese prioriza pequenos gângsteres. “É um
tanto diferente o que se passa em ‘O Irlandês’, em que pela primeira vez
Scorsese opta por um tratamento realmente épico para a saga da organização
criminosa nos EUA, ou de parte dela”, pontua o crítico.

“A
máfia vista por Scorsese não tem nada de romântica. Nem mesmo possui a
cerebralidade dos Corleones. Ela é suja, baixa, sangrenta visceralmente. Mas
não simples. E a narrativa passa pelas alianças provisórias, pelas lealdades
movediças, que se fazem e desfazem ao sabor dos acontecimentos, das ambições de
cada um e dos problemas que se apresentam”, relata Inácio Araújo.

A
história do Irlandês e de seus aliados, chefes e parceiros, é, sublinha Inácio
Araújo, “cheia de realizações (criminosas, em geral) e percalços”. O crítico
frisa que “é narrada de maneira prodigiosamente clara, dada sua complexidade (e
complicação também), por Scorsese”.

Inácio
Araújo diz que Scorsese “sempre foi um narrador exemplar. Desta vez ele se
excede, seja ao detalhar as baixezas que caracterizam os grandes momentos dos
gângsteres, ao descrever sem palavras um assassinato seco e vil, ou ao se deter
nos diálogos cheios de não-ditos em que são pródigos esses supermarginais, ou
ainda ao alternar as festas luxuosas (e sempre um tanto cafonas) com os bares
um tanto infectos em que conspiram uns contra os outros, em que se dão os seus
grandes e em geral sórdidos arranjos”.

Scorsese,
portanto, é, em termos de máfia, “um anti-Coppola”. “Também em relação ao ritmo
esses dois cineastas optaram por caminhos bem diversos. Onde o andamento de
Coppola ao tratar a máfia é elegíaco, em Scorsese é nervoso, como se quisesse
chamar a atenção não à cerebralidade dos, digamos, Corleone, o de Scorsese
parece voltar-se sobretudo à vitalidade, a essa força que impulsiona os seus
personagens na aventura e que o levam, aqui, a compor uma de suas
obras-primas”.

Inácio
Araújo não está dizendo, possivelmente, que Scorsese é superior a Coppola. Mas
sim que o diretor de “O Poderoso Chefão” não esgotou o filão da máfia e é
possível contar a história dela de modo diferente e com a mesma mestria do
filme que se tornou um clássico (nunca frases de um assassino dos mais brutais,
Michael Corleone, foram tão citadas, até como caminho a seguir).

O
filme “O Irlandês” tem mais de três horas de duração. Longo? “Mas também
pode-se dizer o mesmo dos romances de Dostoiévski. E nem por isso…”, afirma,
com propriedade, Inácio Araújo.

Merten
e Inácio Araújo escrevem tão bem sobre filmes que, de repente, o leitor fica
até imaginando que cinema é arte.

(O
brutal Irlandês morreu em 2003 e não poderá ver o filme de Scorsese. É provável
que ficaria mesmerizado, não com sua violência, exposta sem glamour, mas com o
fato de aparecer no cinema — o que, por si, é glamouroso.)

O Irlandês, de Martin Scorsese, é uma obra-prima publicado primeiro em https://www.revistabula.com



Sem comentários:

Enviar um comentário