sexta-feira, 15 de novembro de 2019

“Eu tenho um amigo negro” e o racismo nosso de cada dia

“Eu tenho um amigo negro” e o racismo nosso de cada dia

Durante a Titanomaquia o deus grego artesão do fogo, Hefesto, construiu
a Égide, um poderoso escudo mágico. Essa arma defensiva foi utilizada por Zeus
na guerra contra os Titãs e era talhada com uma imagem assustadora, que causava
medo nos adversários. E não é que agora, na era moderna, surge entre nós uma
nova Égide, desta vez utilizada pelos acusados de racismo em geral? É o famoso “eu
tenho um amigo negro”. 

Infelizmente, parece não adiantar toda a campanha de conscientização
sobre a importância de haver cotas ou medidas de inclusão. O racismo,
definitivamente, está arraigado em nossa cultura: é estrutural. Basta ligar no
noticiário para nos depararmos, entre uma notícia e outra, com algum ignorante,
acusado de determinada vertente de preconceito, cuja defesa preliminar e
primordial é apontar a amizade ou o parentesco que tem com um negro. O véu que
separa a ingenuidade do racismo em potencial é muito difícil de ser enxergado.

Dados do Atlas da Violência 2019 apontam que os negros são as principais
vítimas de homicídio. A população negra também é a que mais sofre com a
desigualdade, e boa parte dela ainda hoje vive à margem das benfeitorias
estruturais do Estado. Após séculos de escravidão e de uma inexistente transição
para a cidadania, o negro sentiu na pele todas as grandes transformações do
país, da época do pelourinho até os dias atuais, com as abordagens policiais
sem motivo e as mortes sumárias. E é exatamente por isso que uma frase tão
singela é, mais que uma tentativa de defesa risível, o triste e fiel retrato de
uma sociedade essencialmente racista.

É necessário ter em mente que o fato de se ter um parente ou um amigo
negro não é desculpa capaz de apagar injúrias raciais deliberadamente praticadas.
Em último caso, é de se pensar que seres humanos não são bichos de estimação e
que, ao projetar seu ato falho em outra vida negra, mais uma vez na história o
agressor estará colocando um corpo preto como escudo para a proteção da pele
branca. Já superamos a sociedade arcaica escravagista em leis há muito tempo,
mas parecemos permanecer presos a ela na mente e nas atitudes.

Apegar-se a amizades ou a ascendentes negros para tentar diminuir a
culpa em uma situação de preconceito apenas consolida toda a sistemática cruel
do racismo. Já existe uma barreira (in)visível e histórica que dificulta a vida
dos negros na sociedade, desde a concepção. Quando alguém diz uma infeliz frase
como essa, ainda que com a maior das boas intenções — o que não parece crível —,
está apenas evidenciando um cunho pessoal ainda mais racista. É como associar um
jogador de futebol a um arrastão. Ou como dizer que há negros que cortam o seu
cabelo. Ou ainda que “até” se consulta com um médico negro. É preciso entender,
de uma vez por todas, que a cor de um negro próximo não é uma Égide contra o
racismo. E, por mais incrível que possa parecer, esses brancos “amigos de
negros” na verdade são apenas Titãs — e não Zeus.

“Eu tenho um amigo negro” e o racismo nosso de cada dia publicado primeiro em https://www.revistabula.com



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