sábado, 25 de abril de 2020

Mais do que hipocrisia, exigir que uma criança de 5 anos tenha aulas a distância é cruel e desonesto

O contato esporádico é salutar e deve ser estimulado, mas encher grupos de WhatsApp e caixas de email com exercícios e recomendações ao vento só dificulta o período, que já é complicado. A hipocrisia de uma pseudoaula a distância precisa ser superada pelo uso da racionalidade. Do contrário, continuaremos em um cenário em que as escolas fingem que ensinam, as crianças, vítimas, nem ao menos fingem que aprendem e os pais, no fim das contas, é que pagam a conta. Literalmente.

Mais do que hipocrisia, exigir que uma criança de 5 anos tenha aulas a distância é cruel e desonesto

Estamos em um período diferente do habitual, com exigências diferentes e, temporariamente — assim esperamos —, passando por uma situação emergencial incomum. O ensino brasileiro, que já superou muitas metodologias obsoletas, agora, em decorrência da pandemia, busca adequar-se a um mundo cada vez mais integrado e digital. As crianças precisam de uma tutoria condizente com o futuro tecnológico que as espera, respeitando seu desenvolvimento em uma idade de descobertas. Contudo, a obrigação da educação a distância é de uma crueldade limítrofe à irracionalidade. Talvez, sem exageros, à desonestidade.

Em tempos passados, a educação dos filhos até determinada idade era uma responsabilidade quase exclusiva dos pais. Com o passar do tempo, foi havendo uma natural transferência de atribuições e, hoje em dia, com a educação integral e uma maior importância do papel das instituições de ensino, as escolas assumem funções no acompanhamento educacional das crianças. Se por um lado a sociedade progrediu rapidamente, não é exatamente correto afirmar que as escolas tenham acompanhado seu desenvolvimento e implantado inovações metodológicas e tecnológicas de forma imediata. A implementação dessas novidades foi e continua sendo paulatina, ocorrendo à medida que a adaptação, a criatividade e os recursos se tornam capazes de absorvê-las em sua integralidade.

Em um mundo ideal, a educação infantil seria uma atribuição repartida de forma proporcional e solidária entre pais, Estado e instituições escolares. Contudo, dadas as diferentes realidades de cada família, com rearranjos e dificuldades impossíveis de se mensurar por previsões genéricas, as escolas indiscutivelmente cumprem um papel fundamental nas escolhas educacionais direcionadas às crianças. As ferramentas para se atingir esse objetivo, contudo, nem sempre dependem única e exclusivamente de suas vontades, uma vez que há leis e diretrizes a serem seguidas, e estas nem sempre são fiéis às exigências de um bom ensino. No momento atual, contudo, as chagas da falta de preparo foram expostas e estão bem claras para quem as queira ver.

O surto do coronavírus, de forma impactante, alterou todo o cenário de planejamento educacional. O acompanhamento e a própria abordagem escolar tiveram de ser bruscamente alterados em decorrência do imprescindível isolamento social a que as crianças foram submetidas como forma de precaução. As escolas, com isso, foram fechadas e obrigadas a alterar seus cronogramas. Como se sabe, o processo educacional de crianças de até 5 anos envolve muito menos matérias didáticas e muito mais uma estruturação em torno de brincadeiras interativas, atividades de desenvolvimento cognitivo, coordenação motora e iniciação à sociabilidade. Pois essa é a grande falha na educação a distância para crianças dessa idade durante a pandemia: a gritante impossibilidade de as escolas cumprirem seu papel de maneira eficaz e honesta.

Por essa razão, ainda que se entendam os motivos elevados e as razões além das forças das escolas, manter as crianças em educação a distância foge ao razoável. A participação dos alunos em videoconferências forçadas, além de representar uma clara desnecessidade — tendo em vista a capacidade dos pais de municiar os filhos com as experiências educacionais necessárias —, parece uma tentativa de impor um liame que não se sustenta na eficiência. Em decorrência disso, o real papel das escolas deveria ser o de instruir os pais sobre como lidar com o período, o de buscar em conjunto soluções para a educação e o de planejar, de forma harmoniosa, uma rotina que amenize o difícil momento vivido por todos.   

A continuidade de atribuições pitorescas, mas pouco eficazes, pode inclusive ser prejudicial às crianças. A despeito de integrá-las e tentar deixá-las mais confortáveis ao manter um vínculo exclusivamente online, a tentativa demonstra quase um desespero por parte das escolas em se tornarem úteis nesses tempos, quando o correto seria investir em integração com os pais. A tecnologia assume um papel importante na educação das crianças, mas, definitivamente, não com esse modelo proposto de educação a distância. O contato esporádico é salutar e deve ser estimulado, mas encher grupos de WhatsApp e caixas de email com exercícios e recomendações ao vento só dificulta o período, que já é complicado. A hipocrisia de uma pseudoaula a distância precisa ser superada pelo uso da racionalidade. Do contrário, continuaremos em um cenário em que as escolas fingem que ensinam, as crianças, vítimas, nem ao menos fingem que aprendem e os pais, no fim das contas, é que pagam a conta. Literalmente.

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