O escritor e compositor tende à permanência artística. Mas o presidente dificilmente será um Vargas ou um Juscelino Kubitschek
Há
pessoas, e não só políticos, que, tal a força derivada de algum poder,
acreditam que o presente é eterno. Mas o presente — por exemplo, quatro ou oito
anos de mandato executivo — é uma gota d’água na história de um país, na
história dos homens. Quem viveu os 15 anos de poder ininterrupto de Getúlio
Vargas, entre 1930 e 1945 — parte deles (1937-1945) sob uma ditadura cruenta —,
certamente, ao menos por alguns instantes, chegou a pensar que o presidente era
uma espécie de Deus, tal a bajulação e, ao mesmo tempo, o medo que se tinha
dele. Pois o líder do PTB se suicidou, em 1954, e deixou um imenso legado, é
certo. Mas está morto e enterrado. E, por mais que tenha sido um grande
presidente, remontando o Estado nacional, não se deve desconsiderar que era um
ditador, um político que esteve próximo de se aliar a Benito Mussolini e Adolf
Hitler.
No
momento, assiste-se um presidente, Jair Messias Bolsonaro, que se apresenta
como de direita — anticomunista —, que parece, embora democrata, confundir-se
com o Estado. “O Estado sou eu”, poderia sugerir, imitando o rei francês.
Entretanto, na democracia, o presidente é, por assim dizer, um representante
provisório do Estado. As razões de Estado, portanto, não devem ser confundidas
com as razões do presidente. Na democracia, o presidente governa para a
sociedade e não deve impor certas pautas — por exemplo, no campo
comportamental. Digamos que Bolsonaro não seja reeleito em 2022, suas pautas
podem ser inteiramente derrubadas pelo presidente seguinte, e exatamente porque
não são de interesse da sociedade, e sim de parte da sociedade, notadamente de
grupos conservadores.
O
lulopetismo patrocinou o tal discurso do ódio — o “nós contra eles”. Repetindo
a esquerda, Bolsonaro apostou em discurso similar. Agora, a se aceitar as
regras do bolsonarismo, são todos contra a esquerda. Porém, se a pessoa não é
de esquerda, mas não quer compor com os radicais de direita, rejeitando o “nós
contra eles”, logo é tachada de “esquerdista”, de companheira de jornada de
socialistas e comunistas. O próprio Bolsonaro não avalia a ambiguidade de seu
governo, que, com o ministro da Economia, Paulo Guedes, é liberal, mas, com
alguns militares e o próprio presidente, é nacionalista. Há um certo
hibridismo.
Mas, de
repente, saltemos para o futuro — daqui a cem anos, quando o presente de 2019
será escassamente lembrado pelos indivíduos de 2119. Digamos que no Colégio
Militar Fabrício Eça de Queiroz um professor faça duas perguntas aos seus
alunos. A primeira: “Quem é o maior compositor popular brasileiro?” As
respostas serão variadas, por certo. Mas vários alunos certamente mencionarão o
nome de Noel Rosa, Ataulfo Alves, Cartola, Caetano Veloso, Chico Buarque,
Gilberto Gil, Paulinho da Viola, e Milton Nascimento (sem falar dos
compositores eruditos, como Villa-Lobos e Ernesto Nazareth). O autor de
“Construção” talvez fosse citado como o principal e, se eu estivesse vivo,
assinaria embaixo.
Independentemente
de sua ideologia política, que tende a esmaecer com o tempo — prevalecendo a
qualidade da arte, pois a estética vai superando o discurso
político-ideológico, dada a passagem do tempo histórico em que foi criada (a
resposta artística acaba pode se tornar mais lembrável do que o tempo que lhe
deu origem) —, a obra musical, até mais do que sua literatura, de Chico Buarque
vai sobreviver, assim como a música de Bach, Beethoven, Brahms e Chopin, a poesia
de Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto e a prosa de Machado
de Assis, Graciliano Ramos, Guimarães Rosa, Clarice Lispector e Lygia Fagundes
Teles.
Se daqui a
100 anos Chico Buarque, sua arte, estará vivo, o que dizer de Bolsonaro? Eis a
segunda pergunta formulada pelo professor, em 2119: “Quem é Jair Messias
Bolsonaro?” Sem oportunidade de consultar o Big Pós-Tudo — sucedâneo do Google,
que estará extinto, possivelmente —, é provável que os alunos — a maioria —
respondam que não sabem de quem se trata.
A
tendência é que, daqui a 100 anos, Bolsonaro se torne um novo Floriano Peixoto.
Hoje, qualquer pesquisa feita nas ruas certamente concluirá que a maioria dos
brasileiros não sabe o nome do segundo presidente da República do país.
Floriano
Vieira Peixoto nasceu em Maceió, em 30 de abril de 1839 — há 180 anos —, e
morreu em Barra Mansa, em 29 de junho de 1895, há 124 anos. Trata-se de muito
tempo? Nem tanto. Mas o Marechal de Ferro está amplamente esquecido. Com
Bolsonaro, daqui a 100 anos, em 2119, acontecerá o mesmo? É provável.
Se
Bolsonaro governasse pensando em todos os brasileiros — e foi eleito para isto
—, superaria a bandeira ideológica e comemoraria o Prêmio Camões para Chico
Buarque. Porque se trata de uma vitória tanto do escritor-compositor quanto do
país e da Língua Portuguesa ou do Português Brasileiro.
Emily
Dickinson e a verdade
É provável que Bolsonaro ache que poesia é “frescura” e, por certo, há um frescor das coisas vívidas no poema de Emily Dickinson, americana do século 19, transcrito a seguir: É provável que Bolsonaro ache que poesia é “frescura” e, por certo, há um frescor das coisas vívidas no poema de Emily Dickinson, americana do século 19, transcrito a seguir:
Dizer toda a Verdade — em modo oblíquo —
No Circunlóquio, o êxito:
Brilha demais p’ra nosso enfermo gozo
O seu sublime susto.
Como a meninos se explica o relâmpago
De modo a sossegá-los —
A Verdade há de deslumbrar aos poucos
Os homens — p’ra não cegá-los.
(Tradução de Aíla de Oliveira Gomes. Uma Centena de Poemas, de Emily Dickinson).
Daqui a 100 anos, quem será lembrado: Chico Buarque ou Bolsonaro? publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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