sexta-feira, 18 de outubro de 2019

O complexo de inferioridade dos fãs de filmes de super-heróis explica a histeria por conta do filme “Coringa”

O complexo de inferioridade dos fãs de filmes de super-heróis explica a histeria por conta do filme “Coringa”

Muitos leitores de histórias em quadrinhos da Marvel e
da DC e, mais recentemente, fãs de filmes de super-heróis, sofrem de um
estranho complexo de inferioridade. A maioria não consegue explicar exatamente
o motivo, sobretudo agora que a cultura nerd está em alta. Vivem como se
estivessem na Matrix. Tudo parece normal, mas, em seus íntimos, sentem que algo
não está certo. Alguns evitam até mesmo pensar sobre o assunto, temerosos de
serem descobertos em sua fraqueza. Discutir o problema é tabu: preferem se
esconder na segurança dos fóruns de internet, onde todo mundo concorda no
principal mesmo quando discorda violentamente nos detalhes.

Mas o elefante branco com asas permanece na sala. O
fato é que, por mais que quadrinhos e filmes de super-heróis tenham adquirido
status cultural e não sejam mais considerados apenas coisas de criança, essas
pessoas sentem que ainda são tratadas como leitores e espectadores de segunda
categoria. Culpa de milênios de hegemonia de temas e linguagens artísticas
tidas como mais refinadas e profundas que outras. Nem sempre são, mas o
resultado é o surgimento desse complexo de inferioridade diante de cultores de
obras canônicas, que podem ir de Machado de Assis a Shakespeare, passando por
Kubrick e Coppola. A situação fica mais evidente quando tentam transformar
artificialmente bons produtores de entretenimento ligeiro em criadores que
possam competir com os medalhões canônicos. Aconteceu esse fenômeno com escritores
como Stephen King, J. K. Rowling e George R. R. Martin, entre outros. Não basta
que sejam divertidos: os fãs querem atribuir a eles uma sofisticação que
obviamente não possuem. Mas quando a nudez do rei é exposta, diante da
objetividade crítica, a única resposta é a idolatria acrítica. Para se
defender, atacam.

Desta forma, sempre que surge um produto cultural que parece
poder ser comparado, aproximado ou emparelhado com obras consideradas eruditas,
esse produto se torna uma espécie de Santo Graal do gênero. Torna-se intocável,
impossível de ser criticado. É o mecanismo de defesa criado pelo complexo de
inferioridade.

Foi o que aconteceu com “Coringa”, dirigido por Todd
Phillips e estrelado por Joaquin Phoenix. A narrativa do filme, a despeito de
sua inegável competência nos aspectos técnicos, possui pontos fracos evidentes,
mas esses problemas se tornaram irrelevantes diante da compensação psicológica
trazida pelo longa-metragem, com o alívio de ver um filme de super-herói (ou
vilão) aparentemente respeitável. O filme passou a ser bom não por si mesmo,
mas por remeter a certa idade do ouro (a Nova Hollywood das décadas de 1970 e 1980)
e por tratar de um tema sério: doenças psiquiátricas. Se a obra é consistente dentro
de sua premissa é o menos importante. Tornou-se socialmente obrigatório gostar
de “Coringa”. Do contrário, o herege é acusado de ser mal informado e pode
sofrer até mesmo patrulha ideológica. Tamanha histeria fez com que defender os
méritos do filme passasse a significar defender os méritos do próprio espectador.
 

As respostas mais comuns, dadas em tom ríspido para
quem não gostou do filme foram: “você não entende nada de quadrinhos”, “você não
entendeu a proposta do filme”, “esse não é o Coringa que você conhece” ou “esse
não é o Coringa ainda”. Notem que todas as respostas que pretendem justificar
as deficiências da obra foram dadas por meio de elementos que não estão na obra.

Esse complexo de inferioridade tornou-se ainda mais
evidente quando comparamos as reações ao fator premiação no Oscar.
Instantaneamente, “Coringa” tornou-se o favorito. Se não vencer será injustiça
ou reacionarismo dos membros da Academia de Hollywood. Em contrapartida, a
sugestão de que “Vingadores: Ultimato” poderia concorrer foi tomada como piada.
Porém, comparados objetivamente, o filme da Marvel é mais bem-sucedido dentro
de sua premissa, que é ser uma grande aventura, não isenta de drama. O cenário,
os personagens e seus arcos dramáticos são mais bem construídos. Até mesmo a
atuação de Robert Downey Jr, como Homem de Ferro, me parece mais coesa que a de
Joaquin Phoenix. Essa afirmação pode parecer chocante, mas é facilmente
verificável. O perfil do personagem Coringa deixa a atuação de Phoenix
naturalmente mais vistosa, mas o fato de o ator atirar para todos os lados (seu
Coringa ora é infantil, ora é ingênuo, ora é sedutor, ora é soturno, ora é
histriônico, ora é sério etc., etc., etc.) não permite que ele entregue um
personagem acabado. Os mais ingênuos naturalmente vão defendê-lo bradando que o
Coringa é assim mesmo, que é múltiplo e imprevisível. Mas não se trata disso. O
fato é que Joaquin Phoenix entregou uma série de esquetes separados, que
dificilmente se mesclam. Individualmente são brilhantes, mas não têm conjunto. Não
vemos um Coringa multifacetado, mas uma coleção de tentativas de compor um
personagem. Impressionam pela técnica de Phoenix, mas não há Coringa em cena.

Mesmo diante desse fato objetivo, afirmar que Robert
Downey Jr. se saiu melhor soa risível. Por quê? Porque “Vingadores: Ultimato” é
um filme para crianças. “Coringa”, não. “Coringa” é coisa séria. Um é colorido,
o outro é escuro. Um é divertido, o outro é pesado. O complexo de inferioridade
não permite ver além do banal. Mas, independente disso, nada muda o fato de que
a aventura da Marvel é tão superior ao drama psicológico da DC quanto o genial
livro infantil “O Pequeno Príncipe” é superior ao dramalhão geopolítico “O
Caçador de Pipas”. O lúdico de um é esteticamente mais interessante que o choro
e ranger de dentes do outro. Retrucar que são coisas diferentes e que não devem
ser comparadas não passa de fuga. Para o mercado e para os olhos do espectador
comum, ambos são filmes de super-heróis. São vendidos e comprados assim.    

Sim, eu sei o que estão pensando: “ele só escreveu
isso porque é um marvete tosco”. Tá bom! Tá bom! Eu entendo…

O complexo de inferioridade é tão arraigado que poucos
perceberão que este texto é uma forma de afirmar que ele não é necessário.
Possivelmente me atacarão como se eu estivesse fazendo uma acusação. Não é
isso. Quadrinhos e filmes de quadrinhos não precisam ser “Hamlet”, “O Pêndulo
de Foucault” ou “Meridiano de Sangue” para serem apreciados. Eles existem
dentro de sua própria lógica. Mas, claro, ler “Hamlet”, “O Pêndulo de Foucault”
e “Meridiano de Sangue” nunca faz mal. Ter esse tipo de repertório ajuda a
colocar as coisas em perspectiva.

Afinal, por que tão sério, filho?

O complexo de inferioridade dos fãs de filmes de super-heróis explica a histeria por conta do filme “Coringa” publicado primeiro em https://www.revistabula.com



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