“O
Demônio da Teoria”, de Antoine Compagnon, é um livro que permite compreender
melhor a posição de Harold Bloom, que morreu nesta segunda-feira (14), aos 89
anos, no contexto da crítica literária contemporânea. Compagnon não escreve a
respeito do professor estadunidense: seu objetivo é debater o polêmico e
triunfal ressurgimento da crítica francesa a partir dos anos 1960, depois de
décadas a reboque da hegemonia de russos, anglo-americanos, italianos e
alemães. E assim está posto o cenário e ficamos conhecendo o terreno inimigo, o
suficiente para entender a enérgica reação de Bloom. O quanto há de polêmica em
torno de sua obra deriva desse espírito de reação.
É
possível afirmar, então, que Bloom é produto da dinâmica das relações sociais
no ambiente acadêmico das universidades americanas nos últimos 40 anos, sob o
impacto da sempre respeitável artilharia francesa. Claro indício de desavença
ideológica foi a iniciativa pessoal de propor um cânone literário, por meio do
qual renovou a ofensiva pessoal contra os adversários institucionais,
localizados na imprensa e nos departamentos de letras, desde aquela época.
Bloom elegera o multiculturalismo e o relativismo postos em circulação — cujas
teorias colocaram em xeque a supremacia do que ele chama de “cânone”, e que
constituem os clássicos tradicionalmente admitidos — como alvos preferenciais
de uma possante ofensiva acadêmica.
Na
solidão do seu gabinete, no campus de Yale, Massachusetts, o crítico
nova-iorquino se pôs a mobilizar um exército de aliados, dando à extraordinária
companhia o nome de “Memória”. (A similaridade com uma força marcial não é
despropositada para quem raciocina em termos de conflito.) Quem o encontrasse
por ali notaria apenas um velho sexagenário debruçado à escrivaninha carregada
de livros empilhados, alternando-se entre a leitura e a redação. No que poderia
considerar um “processo avançado de cegueira”, debocharia de seus adversários,
com dificuldade para enxergar os 26 personagens invocados por ele, mortos mas
ironicamente “mais vivos do que nós mesmos”. Eram todos muito eminentes,
compondo uma cena realmente fantástica, digna de Kafka. Os encontros
continuariam na casa em New Haven, onde mora o professor Bloom, e é possível
que tenham varado noites e noites em claro: a obsessão do anfitrião pela leitura
fazia com que lutasse até o fim contra o cansaço das pálpebras.
A
iniciativa lembra um poema de Bertolt Brecht, “Visita aos poetas banidos”, no
qual um grupo reúne-se numa cabana com o malfadado poeta comunista. Cada um
deles tenta consolar o amigo pelo desterro: Brecht acabara de ser expulso de
sua terra pela tirania de Adolf Hitler. E todos se calam quando Dante, ele
próprio vítima da perseguição política séculos antes, lembra a terrível
condição dos poetas: “Foram-lhes destruídos não só os corpos, mas também as
obras”. Brecht, seguramente um autor canônico, escreveu esse poema em meio aos
acontecimentos da Segunda Guerra Mundial, quando um artista dissidente podia
ser realmente assassinado pelo regime nazista, na Alemanha. Mas Dante é
daqueles que sabiam que, para o artista, o esquecimento é mais lamentável do
que a morte física.
A
obra que se perde é o grande fantasma de um aspirante a escritor, porque é ela
que pode ou não lhe assegurar a imortalidade possível: a que é hóspede da
memória.
Felizmente,
para Harold Bloom, apesar de achar que vivia sob qualquer regime, menos numa
democracia, era nula a possibilidade de ser assassinado por causa de suas opiniões,
nos Estados Unidos. Não obstante, estava certo em acreditar no risco da
ignorância e o relativismo prevalecerem e olvidar a alta literatura, domínio
dos clássicos Dante e Ovídio, este o primeiro a recomendar a Brecht, naquele
encontro imaginário do poeta com seus amigos: “Melhor não sentares. Ainda não
morreste. Quem sabe ainda não retornas? E sem que nada mude senão tu mesmo”.
Provavelmente
nada mudaria porque “nada” é tropo para definir o sistema, mas, então, desistir
seria admitir a derrota. Ao menos para Harold Bloom o conselho do poeta romano
passou batido, com a publicação daquele livro combatente, “O Cânone Ocidental”,
em 1994; livro de um homem acabrunhado que não mudou de opinião, diante das
severas pressões externas. A palavra “desterro” pode ser uma metáfora para
designar “marginalização”, levada a termo por adversários institucionais
decididos, infiltrados nos departamentos de letras das universidades e
municiados daquele relativismo histórico-cultural bem assimilado, pelas
academias. E não apenas nos Estados Unidos: a influência da chamada “Escola do
Ressentimento” é universal e, talvez tenha tido as mesmas consequências
reformistas na África do Sul como no Brasil.
Crítico
e crítica
É
bem irônico que a situação na qual Harold Bloom se define seja francamente
política, ao declarar-se “velho romântico institucional” e leitor sitiado. Como
formalista, entende que a literatura nasce da própria literatura, referindo-se
à sua atividade apenas como “crítica estética”, destituída de índole
democrática e função moral. O modelo assumido em que se baseia é o neoclássico inglês
Samuel Johnson, canonizado entre os 26 nomes que povoam a lista pouco
surpreendente que nos apresenta, de escritores seminais. Ao escalar Johnson,
Bloom eleva a crítica literária à condição de trabalho imaginativo,
consagrando-se a si mesmo como artista em potencial, para possível inclusão
futura. Em consequência: onde situar a crítica literária — apenas no âmbito da
história da literatura (orbitando na periferia das obras de ficção), ou ela
teria, de fato, um excedente estético que lhe faculta ingressar num campo
distinto ao das ciências?
A
questão é causa de debates fervorosos e insolúveis. Por hora, o fato do
esteticista vitoriano Walter Pater ser um dos principais mentores de Bloom não
pode nos enganar: a posição em que este se coloca é mais moderada do que
parece, mantendo-se olimpicamente equidistante do sociologismo e do formalismo
mais radicais. Daí, talvez, a simpatia por um terceiro crítico, o liberal
(leia-se esquerdista) William Hazlitt. Com a mesma determinação que combate os
marxistas, que pretendem explicar os textos pela economia, Bloom combate o “new
criticism eliotiano” e a crítica francesa dos anos 1970, responsável pela
relativização das noções de “valor” e “autoridade”, que lhe são tão caras.
Para
entender bem sua posição é indispensável identificar os seis ramos do
ressentimento, de acordo com “O Cânone Ocidental”: marxistas, feministas, lacanianos,
neo-historicistas, desconstrucionistas e semióticos. Alcunhados de “lemmings”
(espécie de roedor do Pólo Ártico) seriam os porta-vozes do
“multiculturalismo”, aos quais a política interessaria mais do que a
literatura, reduzida a “mistificação burguesa”. De acordo com Antoine
Compagnon, tal conceito de literatura é bem situado, no tempo: “Estamos em
1968: a queda do autor, que assinala a passagem do estruturalismo sistemático
ao pós-estruturalismo desconstrutor, acompanha a rebelião antiautoritária da
primavera. Com a finalidade de, e antes de executar o autor, foi necessário, no
entanto, identificá-lo ao indivíduo burguês, à pessoa psicológica, e assim
reduzir a questão do autor à da explicação do texto pela vida e pela
biografia”.
Portanto,
a morte do autor é uma resposta política a um acontecimento político: a
literatura ficou de fora! O radicalismo de Roland Barthes é intoxicado de
ideologia, o que apenas confirma a impossibilidade de não haver ideologia em
parte alguma, inclusive nos textos. Para Bloom, autor e leitor são parte
indefectíveis do jogo, restituindo seus direitos à cidadania, segundo o
conceito de que “literatura não é apenas linguagem; é também vontade de
figuração…” e “desejo de estar em outro lugar”; desejo que só pode ser da
pessoa (autor) e não da obra (texto). O valor estético é, assim, resultado de
“interpretação”, o que recoloca o escritor e suas ansiedades no centro do
debate sobre o conceito de literatura.
A
obsessão pela mente de Shakespeare — “mais fundamental para a cultura ocidental
que Platão e Aristóteles, Kant e Hegel, Heidegger e Wittgenstein” — não é prova
suficiente de interesse pela figura humana por trás de peças, poemas e
romances?
O
limite da intertextualidade é expresso nos seguintes termos: “A grande literatura
é sempre reescrever ou revisar, e baseia-se numa leitura que abre espaço para o
eu…” A crítica francesa ficaria escandalizada com a convicção de que o leitor
(que não deixa de ser também o autor), tem por sua vez uma função pragmática:
“lembrar e ordenar as leituras de uma vida”, ocupando uma função sistêmica de
alta relevância, sem a qual a grande literatura deixaria de existir. O leitor
não é uma simples invenção conceitual, mas uma entidade concreta; não é uma
pessoa em sociedade, mas um “eu profundo”, que “não lê pelo prazer fácil ou
para expiar alguma culpa social, mas para ampliar a existência solitária”.
Para
as finalidades deste ensaio, li principalmente “O Cânone Ocidental”, em
particular as partes nas quais o autor reflete sobre o estado de coisas que
visa combater. São elas: “Uma Elegia para o Cânone” e “Conclusão Elegíaca”, de
sorte que: “o que tenho a dizer sobre nossas misérias atuais está em meu
primeiro e último capítulo”. Ambos talvez sobrevivam como os textos
fundamentais de “O Cânone Ocidental”, no qual, a meu ver, Harold Bloom esboça
uma atitude espantosamente panfletária. Todos os demais capítulos reverberam-na
nas entrelinhas.
De
acordo com referências nominadas, as características predominantes da crítica
bloomiana podem ser assim resumidas: psicologismo, agonismo-esteticismo e
elitismo, ligeiramente esmiuçadas na sequência.
Psicologismo — Como uma amante pervertida, a grande literatura é sadomasoquista: só nos oferece grandes prazeres por meio do sofrimento, devido às dificuldades metafóricas e cognitivas que a caracterizam.
O
eu individual (egoísta) atua como método exclusivo de apreensão do fenômeno
estético; solipsismo. Influência sempre existiu, e Bloom nada acrescenta a essa
noção, a não ser a ansiedade do autor, que pode ser brincalhona (Cervantes é o
modelo) ou agressiva (Dante).
Cânone
como terapia, que ajuda a dar forma e coerência às ansiedades do escritor. A
obra é, por si mesma, uma externalização da ansiedade; uma ansiedade realizada.
No próprio conceito criado por Bloom — “ansiedade da influência” — inscreve-se
o jargão psicológico.
Este
mal-estar acometeria os escritores como se fossem pacientes que só conseguem se
tratar (ou piorar seu estado) no confronto direto com a autoridade já morta.
A
propósito do jargão profissional, a utilização reiterada dos seguintes termos:
“rivalidade”, “rejeição”, “sofrimento”, “prazer”, “ambivalência”,
“ressentimento”, “egoísmo”, “defesa” e, entre outros: o “Complexo de Hamlet”
para caracterizar Freud em relação a Shakespeare — “o pai que ele não queria
reconhecer”.
Portanto,
apesar da negá-lo, o triunfalismo agonístico se manifesta como Complexo de
Édipo transfigurado. (O embate contra a crítica francesa não exclui a
influência da psicanálise sobre a crítica estética.)
Agonismo-esteticismo — O “Dicionário Houaiss” esclarece que o “agonista” era aquele que, na Grécia antiga, se dedicava ao serviço militar; por sua vez “agonístico” refere-se a luta, ao conflito, ao combate. Para a crítica bloomiana, o conceito de influência deixa de ser pacífico e assume contornos dramáticos, em função dessa espécie de herança social, o agon: “A imaginação literária é contaminada pelo zelo e os excessos da competição em sociedade”. O darwinismo converte-se em categoria literária, e a literatura num espaço de conflito perpétuo entre candidatos à sobrevivência. Esse o imperativo — também ele uma psicologia, a da criatividade — que norteia a crítica: “Um crítico pode ter responsabilidades políticas, mas a primeira questão é levantar de novo a antiga e bastante sombria pergunta tripla do agonista: mais que, menos que, igual a quê?”.
Bloom
não distingue entre o agonístico e o estético, sendo que o princípio de
seletividade é severamente autônomo: “Não pode haver literatura forte, portanto
canônica, sem o processo de influência literária”. A agudeza dessa observação
destrói impiedosamente toda criação pseudo-artística. A proliferação de
escritores esteticamente fracos é sintoma não apenas da falta de talento;
também é indício de que não leram, ou se leram não foi o essencial. Não é a
crítica que os condena ao desaparecimento: é a própria literatura ou, se
preferir — a ausência de literatura.
Segundo
este conceito, quem pretende participar da memória literária da humanidade deve
ler e absorver conhecimentos direto na fonte; deve estudar os predecessores
como espartanos dispostos a entrar em conflito com gregos, uma vez que “a
influência literária é a política do espírito”.
Elitismo — À luz das relações emblemáticas de Píndaro com a aristocracia romana, na Antiguidade, a crítica estética afirma que a continuidade do cânone secular baseia-se na aliança entre riqueza e cultura. A contragosto, Bloom acaba assumindo que as condições sociais determinam em alguma medida a arte: “o eu individual, pesa-me admitir, só se define contra a sociedade, e parte de seu agon com o comunal faz inevitavelmente parte do conflito entre classes sociais e econômicas”.
Isso
fica evidente quando, na esteira de Hazlitt, ele afirma que as “imagens
distintas”, que a poesia é capaz de sugerir, estão ao lado dos tiranos e não do
povo. Portanto, não nega a impossibilidade de autonomia absoluta do artista em
relação ao meio: “A musa, trágica ou cômica, toma o partido da elite”. O que
chama de “padrões estéticos e intelectuais” contrastam com a ideia de justiça
social, ao menos enquanto isto significar abrir o cânone para a subliteratura,
com suas inevitáveis facilitações para o entendimento comum. Os valores
estéticos são normalmente complexos, uma vez que a força poética funda-se na
confluência de “linguagem figurativa, originalidade, poder cognitivo,
conhecimento e dicção exuberante”. O único livro verdadeiramente popular no
Ocidente, que reúne todas essas qualidades, é a Bíblia, cuja leitura pelas
classes baixas reflete menos interesse e conhecimento autênticos do que a força
subjugadora da doutrinação cristã. Nenhum outro livro goza desta prerrogativa.
Decepcionante,
Pablo Neruda, ou mesmo Dante Alighieri, ilustra cabalmente a verdade desse
julgamento, e somos tentados a concordar com ele. O melhor do poeta chileno,
descendente direto de Whitman, é o hermético autor de “As alturas de Macchu
Picchu”, não o cantor, imitado por toda parte, de vários poemas panfletários de
índole stalinista. Isso é sintoma de outro fato mais grave: a radicalização do
elitismo que eu chamaria de reflexivo, ligado ao capital econômico e à
instrução, derivando para o elitismo original da comunidade artística, do qual
nenhuma consciência criativa abdica sem prejuízo estético: “Basicamente todo
escritor luta por si mesmo, e muitas vezes trairá ou esquecerá sua classe para
promover seus próprios interesses, que se centram inteiramente na
individuação”.
Shakespeare
Uma
das funções da crítica é descobrir e nos apresentar um método de análise, e a
crítica estética bloomiana criou o seu, baseado na “Ansiedade da Influência”.
Deste último caminho deriva, talvez, o equívoco de só associá-la ao culto
secular, que a muitos parece exagerado, de Shakespeare. Na verdade não há
exagero: há apenas a tentativa legítima de demonstrar, livro após livro, a
eminência do poeta inglês. A singularidade de Shakespeare — partilhada apenas
por Dante — já foi defendida, bem antes, por um dos maiores historiadores da
literatura no século 20, Otto Maria Carpeaux, na “História da Literatura Ocidental”:
“É o maior dramaturgo e o maior poeta da língua inglesa. Enquanto a criação de
um mundo poético completo for mantida como supremo critério, é Shakespeare
superior a Cervantes, Goethe e Dostoiévski; e só Dante participa dessa sua
altura. Enquanto Shakespeare, pela liberdade soberana do seu espírito, está
mais perto de nós e de todos os tempos futuros do que o maior poeta medieval, é
Shakespeare o maior poeta dos tempos modernos e — salvo as limitações do nosso
juízo crítico — de todos os tempos”.
Diante
disso, o proselitismo bloomiano pode até irritar alguns leitores, mas a
percepção que tem sobre este poeta não é nova nem exclusiva, e provavelmente
ela concordaria que a “liberdade soberana de espírito” põe o dramaturgo ainda à
frente de Dante. A ortodoxia do poeta florentino — baseada no credo político da
“unidade do Império cristão sob o condomínio do Imperador e do Papa”, segundo
Carpeaux — colocam-no para sempre em desvantagem, na medida em que sua obra
suprema reflete suas convicções pessoais. A “intenção” do poeta, na “Comédia”,
é palpável e devastadora, ainda que a obra sobreviva por suas qualidades
imanentes.
Sobre
a influência shakespeariana deve ser dito logo, a fim de se evitar
generalizações improváveis: nem todo mundo foi influenciado pelo dramaturgo. As
literaturas espanhola e francesa conseguiram sobreviver ao seu contágio.
Montaigne, Molière e Proust (incluídos em “O Cânone Ocidental”) são
relativamente alheios ao fenômeno em questão: “Montaigne entreouve-se, como
Hamlet e Iago; isso é precisamente o que os protagonistas de Molière não
farão”. O primeiro repete na vida o que o Hamlet repetiu na ficção, mas sequer
tomou conhecimento da existência do bardo elisabetano, ao passo que o segundo
teria sido totalmente impermeável à maior invenção shakespeariana.
A
respeito de Proust, cuja soberba capacidade de representar a personalidade e o
amor sexual rivalizariam com a do poeta inglês, Bloom foi suficientemente
esclarecedor: “Proust jamais dá ao ciúme uma ancestralidade literária”, o que
significa que sua concepção sobre esses temas é inteiramente original. Sequer
Sigmund Freud contribuiu para forjá-la. A cultura francesa é uma das mais imunes
a contágio que conhecemos, tanto assim que sobreviveu ao shakesperianismo. Os
escritores analisados por Harold Bloom dividem-se entre os que foram
influenciados fortemente pelo poeta ou que têm força quase ou propriamente
“shakespeariana”, deixando claro que a originalidade comporta mais gente. Kafka
é um desses casos, e provavelmente Goethe.
A
força de Shakespeare é arrasadora na construção de personagens — muito
particularmente Falstaff e Hamlet. Ora, como avaliar que Kafka ou Jorge Luis
Borges sejam canônicos a partir desse critério? Simplesmente não faz sentido,
em que pese os gêneros de apreciação do crítico, nesses e em muitos casos:
contos e aforismos. Nos primeiros não há espaço suficiente para a construção de
carateres e complexidades psicológicas, e os segundos são apenas frases.
Quem,
segundo Harold Bloom, sentiu todo o peso de Shakespeare nas costas foi a
própria literatura de língua inglesa: Wordsworth, Beckett, Milton, Virgínia
Woolf, Joyce. Fora da Grã-Bretanha, quem mais teria sofrido impacto semelhante
foram os escritores norte-americanos, ao lado de Freud e Tolstói,
principalmente. Daí em diante a influência do dramaturgo, se não acaba, tende a
minimizar-se.
A
face política
No
livro “Como e Por que Ler”, Bloom teme pela perda da ironia. O que talvez
muitos não tenham percebido é que Bloom é, ele próprio, um talentoso ironista,
já que predica o estético por meio de um brutal engajamento panfletário. Tudo o
que foi dito até aqui prova que “O Cânone Ocidental” é eivado de ambivalências
de natureza sociológica. Podemos discordar das opiniões contidas neste livro —
não isento portanto de opiniões políticas muito explícitas — mas não dá para
reduzi-lo a fenômeno de mercado. É perfeitamente possível interpretá-lo como
uma variante do imperialismo cultural, por meio de escritores da língua
inglesa. Um cálculo elementar chega ao seguinte resultado: 13 daqueles 26
canonizados são de origem anglo-saxã, e isso é bastante tendencioso. Por outro
lado, “ninguém tem autoridade para dizer-nos o que é o Cânone Ocidental. (…)
Não é, não pode ser, a lista que apresento, ou que que qualquer outro poderia
apresentar. Se fosse, isso tornaria tal lista um mero fetiche, apenas mais uma
mercadoria”.
Aceitando
isto, só resta tentar uma compreensão menos parcial, embora não menos política,
destas opiniões. Bloom deseja de forma sincera e manifesta dizer algo “sobre
nossas misérias atuais”, e o faz baseado em argumentos razoáveis e naturalmente
antipáticos, porque seus critérios são restritivos.
A
meu ver, a definição mais abstrata é também a mais importante do cânone: “arte
da memória”. Como tal, ele é o “ministro da morte”, em dois sentidos: porque
ensina-nos a lidar com nossa solidão e porque ecoa a autoridade dos mortos. O
cânone religioso funda-se na expectativa da salvação, e não menos o secular, já
que obriga à necessidade de escolha diante da finitude da vida. Ou seja,
escolhemos porque não temos escolha: o que justifica, então, escolher o menos
bom em detrimento do melhor? Ao longo das eras a seleção do que é “melhor” foi
sendo feita pelo público e por uma série de testes de sobrevivência, aos quais
apenas poucos resistiram. Mas cada época trás consigo novas ameaças.
O
diagnóstico do crítico propõe os seguintes temas: irrelevância dos estudos
literários para a sociedade americana; escolas e faculdades admitindo contínuas
levas de multiculturalistas (menos preocupados com a literatura do que com a
reforma social); mal-estar com a educação literária, a caminho da
“balcanização”; risco de a literatura clássica ser reduzida à quase
fossilização (como os estudos de grego e latim) e rebaixamento da educação
primária e desatenção dos alunos. Por razões de contexto não temos condições de
emitir opiniões sobre o primeiro ponto, e afora a questão da dispersão dos
estudantes (o quadro é diferente, aqui no Brasil?) tudo sugere a mesma coisa:
politização e subliteratura como mal endêmico nas academias. O resultado foi a
corrosão dos padrões intelectuais e estéticos que permitiram chegar até nós o
que se entende por literatura clássica.
A
globalização propiciou um fenômeno novo nas relações sociais, que é a supressão
da ideia de centro e periferia, com Europa e Estados Unidos à frente. O efeito
imediato e nostálgico dessa crise de hegemonia sobre o domínio estético é o que
Bloom chama de “balcanização”, ou seja, a desintegração da tradição em
benefício do multiculturalismo, por analogia com a situação política e
geográfica de vários povos eslavos. Isso equivaleria a nivelar a arte por
baixo, apenas para atender às demandas da diversidade, relegando padrões de
excelência secularmente constituídos. A estética cai para segundo plano em
relação aos interesses políticos imediatos.
Neste
campo minado por más interpretações, Bloom abre brechas para a discriminação
(quando não para o racismo), ao sugerir, mau retórico, que mulheres e negros
associam-se à má literatura, o que é escandaloso. Certamente o ativismo das
minorias (que na verdade são a maioria) não pode confundir a conquista de
direitos sociais com o reconhecimento da subliteratura, venha ela de onde vier
— inclusive do universo masculino e ariano.
Bloom
não tem ilusões quanto ao nosso destino: a morte é universal e contempla a
todos. A única maneira de termos algum conforto é nos conhecer melhor com a
ajuda de instrutores qualificados, papel que não cabe aos facilitadores mas aos
mestres consagrados pelo tempo, tornando a pergunta da crítica estética
inevitável. Para pessoas dotadas de talento literário, ler e escrever são meios
possíveis de alcançar a imortalidade, ainda que a imortalidade da lembrança
para um número expressivo de pessoas. É possível que o que mais importa, em
nós, sejam de fato os nossos pensamentos e opiniões, pois são a única coisa
humana potencialmente indestrutível, que se transmite por meio de registros.
Tudo o mais, nos termos do Eclesiastes, é vaidade e vai desaparecer, inclusive
nossos corpos, o que é deprimente para o culto hedonista dos dias atuais.
Ao
fim e ao cabo, o que sobra das elegias de Bloom? Um militante fervoroso da
literatura, e sua voz desesperada não deixaria necessariamente de ecoar nas
instituições de ensino mais sérias, motivando corações e mentes apaixonados
como ele por aquilo que o tempo já testou: o poder de certas obras e de certos
autores, que considera canônicos. A crítica estética é, nesse sentido,
suficientemente persuasiva: sua causa é a sobrevivência da mais alta
literatura. Embora ela se oponha ao culturalismo, Bloom sabe que o poder de um
livro inspirado transcende povos, culturas e gêneros taxonomicamente literários.
Em
meio a uma nova guerra civilizacional entre ocidentais e muçulmanos, ele
surpreende ao defender a leitura do livro sagrado dos muçulmanos, o “Alcorão”,
obra “verdadeiramente importante para todos nós”, até porque “o islã há de
exercer crescente influência sobre nossas vidas, seja nos Estados Unidos ou no
resto do mundo”. Escreveu isso enquanto o fanatismo religioso de Karl Rove e
outros fundamentalistas da Casa Branca saqueavam o Iraque. O crítico nem mesmo
se cansou de alfinetar o ex-presidente George W. Bush, fazendo coro à onda
mundial contra o neoconservadorismo republicano, cuja agressividade culminaria
no 11 de setembro.
Em
matéria de política cultural Harold Bloom não poderá ser inteiramente relegado
ao esquecimento. Em meu entendimento bastaria uma simples e crucial pergunta
para justificar sua cruzada: o que um vestibulando ganha com um autor de
terceira categoria, que não ganharia lendo Homero?
Harold Bloom: morreu o mais notável crítico literário da América publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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