Mikhail Bulgákov, que cedo trocou a medicina pela
literatura e pelo teatro, morreu em 1940, com quase 49 anos, de complicações
renais. Muito possivelmente, seu quadro agravou-se devido às pressões do regime
stalinista, que o proibira de publicar livros e trabalhar com o teatro. “A
partir de 1926, não conseguiu publicar nenhuma das suas obras de ficção, nem
mesmo as que mais prezava”, conta Boris Schnaiderman. Sua obra só foi publicada
integralmente depois da glasnost de Mikhail Gorbachev. Porque Bulgákov não
aceitou o cabresto do stalinismo. Curiosamente, sua prosa era lida e apreciada
por Stálin. Uma vez, em desespero, escreveu uma longa carta para o ditador
pedindo emprego, pois os teatros e as editoras o censuravam e o vetavam. Stálin
ligou para Bulgákov e disse: “Nós recebemos sua carta. Li com os camaradas. O
sr. vai obter uma resposta favorável… Será que realmente devemos deixá-lo
partir para o estrangeiro? Nós o aborrecemos tanto assim?”. Desconcertado, o
escritor respondeu: “Pensei muito nos últimos tempos se um escritor russo
poderia viver fora de sua terra. E me parece que não”. Conseguiu emprego num
teatro, mas ficou sob vigilância expressa.
Novamente perseguido pelos stalinistas, Bulgákov
recorreu a Stálin, por carta, mas não foi atendido. Na década de 1930, escreveu
uma peça sobre o ditador, “Batum”. Stálin avaliou que havia sido apresentado
como herói romântico e a vetou. Bulgákov era perseguido porque não se assumia
como comunista e, ao mesmo tempo, rejeitava a mediocridade da arte engajada.
Chegou a ser atacado por Maiakóvski (com quem jogava bilhar), o poeta que, mais
tarde, também se tornou vítima do realismo socialista, porque, “moderno
demais”, fazia uma arte “incompreensível para as massas”. Sobre a censura aos
seus trabalhos, disse para a mulher, Eliena Serguéievna: “Por que isso? Tudo se
desfaz no ar, desaparece, enquanto podia permanecer, podia ser escrito”. Os
manuscritos acumulavam-se numa estante.
Ao mesmo tempo em que tentava publicar seus livros e
encenar suas peças — chegou a adaptar para o teatro “Almas Mortas”, de Gógol, e
“Dom Quixote”, de Cervantes, além de homenagear o maior poeta russo na peça
“Púchkin” (igualmente censurada) —, Bulgákov escrevia “O Mestre e Margarida”.
Em 1937, estava decidido a abandonar o Bolchói e a apresentar o romance à
censura. Mas, ao ler trechos para amigos, apresentando a história do Diabo que
chega a Moscou (tudo a ver com Stálin e seus acólitos), Bulgákov recebeu
recomendações para esquecê-lo. “O romance, apesar das cenas divertidas,
escritas com o mesmo humor ferino de sempre, deixava a todos intrigados, um
sorriso amarelo no rosto. (…) … o recurso à satirização alegórica e ao
fantástico atingia as raias de um hiper-realismo contundente”, assinala Homero
Andrade, no livro “O Diabo Solto em Moscou — A Vida do Senhor Bulgákov”.
Bulgákov leu três capítulos do romance para o editor
Nikolai Angárski, que disse: “É impossível publicar isso”. O escritor
perguntou: “Por quê?” O editor respondeu: “É impossível”. Na ditadura, toda
metáfora é uma arma contra o ditador e, portanto, não pode chegar ao papel. “O
Mestre e Margarida” era “sua terrível vingança contra tudo aquilo que o
stalinismo representava”. Bulgákov tinha medo, mas desafiava o stalinismo o
tempo todo e raramente fazia concessões. Recusou-se, a vida toda, a fazer arte
proletária, sem humor, sem sátira. “Ele não é dos nossos!”, esbravejavam os
comunistas.
Insistente, Bulgákov continuou a escrever o romance.
Deprimido, escreveu para sua mulher: “E daí? — você pergunta? Daí não sei. Provavelmente
você o ajeitará na escrivaninha ou na estante onde jazem minhas obras
massacradas, e vez ou outra você se lembrará dele. (…) Agora é o seu
julgamento que me interessa, pois não sei se chegarei a conhecer o julgamento
dos leitores”.
Durante 12 anos, escreveu e reescreveu o romance e, em
março de 1940, pouco antes de morrer, praticamente cego, fez Eliena “jurar que,
enquanto vivesse, tentaria” publicar “O Mestre e Margarida”. “Para que o
conheçam, para que o conheçam!”, desesperou-se Bulgákov. No dia 10 de março de
1940, o escritor morreu, praticamente na miséria, como seu amigo Ievguêni
Zamiátin, autor do excelente romance “Nós”, que influenciou, decisivamente, o
romance “1984”, de George Orwell. Ligaram do Kremlin: “É verdade que o camarada
Bulgákov morreu?” Ao saber que sim, a pessoa desligou. Mais uma cena armada por
Stálin, sr. da vida e da morte na União Soviética, entre 1924 e 1953. Poucos
escritores e dramaturgos compareceram ao velório. A maioria temia a polícia
secreta.
Anna Akhmátova escreveu em março de 1940 um poema em
homenagem ao amigo morto:
A ti, em vez das rosas sepulcrais,
Em vez do incenso do turíbulo;
Tiveste uma vida tão difícil e até o fim
Ostentaste um magnífico desdém.
Bebias vinho, troçavas como ninguém
E sentias gravar o sufoco de paredes,
E à terrível visitante abriste a porta
E com ela a sós te fechaste.
E deixas de ser, e tudo à volta cala
Tua vida sofrida e sublime,
Só minha voz ressoará com flauta
No silêncio de teu banquete funerário.
Oh, quem havia de crer que a mim, a doida,
A mim, que ardo em fogo lento,
Que me esvaio toda e sou por todos esquecida,
Tocaria entender um ser que, cheio de forças,
de ideias brilhantes, e de vontade,
É como se ontem falasse comigo,
Dissimulando o calafrio da agonia.
Bulgákov, Boris Pasternak e Akhmátova eram amigos.
Certa vez, quando a poeta andava desesperada à procura de notícias sobre o
filho, Bulgákov aconselhou-a a procurar diretamente Stálin, o que ela fez, com
resultado positivo.
Em “O Mestre e Margarida”, um personagem de Bulgákov,
Woland, diz, ecoando o escritor: “Manuscritos não ardem” (na tradução de Homero
Andrade. Schnaiderman prefere “Os manuscritos não se consomem pelo fogo”). A
história possivelmente foi preservada porque Bulgákov não tentou publicá-la. Os
manuscritos teriam sido queimados ou guardados em algum cofre da KGB, se
tivessem sido apresentados a alguma editora (ressalve-se que o romance foi
datilografado, a pedido do autor).
No epílogo “Manuscritos não ardem!”, Homero Andrade
faz um relato sobre o que aconteceu à literatura de Bulgákov depois de sua
morte e durante o “degelo” soviético (após 1956). A peça “Os Dias de Turbin”
(baseada no romance “O Exército Branco”), pela qual Stálin era apaixonado (se
era apaixonado por alguma coisa, além do poder), continuou a ser encenada, com
sucesso. Em 1941, a peça “Dom Quixote” entrou em cartaz. A peça “Púchkin”,
rebatizada de “Os Últimos Dias”, foi encenada, em 1943. “A Debandada”, sua peça
mais proibida, se tornou um sucesso de público. “Molière” foi levada ao teatro
na década de 1960. Em 1962, apareceram em livro. Na Rússia de Stálin, escritor
bom era escritor servil e, sobretudo, morto.
Para cumprir a promessa feita ao marido moribundo,
Eliena passava o tempo tentando publicar suas obras, notadamente “O Mestre e
Margarida” — guardado a sete chaves. Em 1965, depois de marchas e
contramarchas, Eliena conseguiu publicar “Romance Teatral”. Em 1966,
finalmente, “O Mestre e Margarida” é publicado, na revista “Moskvá” (“Moscou”).
“O impacto causado sobre opinião pública foi enorme, catártico. A edição de
‘Moskvá’, com a primeira parte do romance, esgotou-se em menos de uma semana.
(…) Os leitores riam à socapa, um riso amargo. (…) Essa edição da revista
‘Moskvá’ ainda não trazia o texto definitivo, pois sofrera cortes da censura.
Isso não impedira sua publicação em livro naquele mesmo ano, juntamente com os
também ainda censurados ‘O Exército Branco’, ‘A Vida do Senhor Molière’ e
‘Romance Teatral (Memórias de um Defunto)’. Em 1967, por arte de Eliena
Serguéivna, a editora italiana Einaudi lançava a primeira tradução do texto
integral do romance no Ocidente. Mas os leitores soviéticos conheceriam a
versão integral da obra apenas em 1989, com a publicação das ‘Obras Escolhidas’
em dois volumes”, relata Homero Andrade.
Com sua independência e espírito satiricamente
crítico, ao não aceitar peias dos comunistas, talvez optando pela morte (sua
saúde piorou quando Stálin proibiu a encenação da peça “Batum”) ao preferir a
verdade à adulação, Bulgákov se tornou, como diz Homero Andrade, o “profeta do
apocalipse soviético”. Hoje, é objeto de culto na Rússia.
Outro livro que sintetiza a história de Bulgákov é “Os
Escombros e o Mito — A Cultura e o Fim da União Soviética” (Companhia das
Letras, 306 páginas), de Boris Schnaiderman. Chamo este livro sensacional de “O
Arquipélago Gulag da Cultura”. A obra mostra que o stalinismo foi também uma
tragédia em termos culturais. A obra resgata grandes autores que não podiam
publicar seus livros durante o regime stalinista e, mesmo, depois. Alguns
guardaram seus originais durante anos.
Mikhail Bulgákov: a história do autor que não aceitou o cabresto do stalinismo publicado primeiro em https://www.revistabula.com
Sem comentários:
Enviar um comentário