É muito comum escutarmos
de certos pedagogos, teóricos do ensino, secretários de educação, proprietários
de colégios particulares e outros “especialistas” que o professor é imbuído da
“missão” de ensinar. Para eles ser professor é, acima de tudo, um “sacerdócio”.
Mesmo a recente substituição da palavra “professor” pela palavra “educador”
aconteceu em função desse discurso politicamente correto, que é quase
hegemônico, repetido à exaustão nas universidades, em livros, teses,
entrevistas, festinhas escolares, reuniões de pais, reuniões pedagógicas etc,
etc. etc. Contudo, apesar de todas as boas intenções embutidas no discurso, sua
perspectiva é frágil, não se sustenta, não resiste a uma análise lógica
apurada. Na verdade, qualquer pessoa um pouco mais perspicaz é capaz de notar
que ela é nociva ao desenvolvimento da profissão e acaba por sabotar a própria
condição de profissional do professor.
O discurso “missionário”
dilui o caráter intelectual inerente à formação acadêmica do professor. Isso
resulta em uma filosofia pedagógica frouxa, que tende a valorizar mais a
“vocação para ensinar” que o “preparo para ensinar”. É a elevação do místico em
detrimento do pragmático. Senão vejamos: termos como “missão” e “sacerdócio”
automaticamente chamam outros como “abnegação” e “sacrifício”. Vista dessa
forma, a educação deixa de ser uma atividade laica para ganhar ares quase
religiosos. O professor deixa de ser um profissional que estudou muito para
poder transmitir e produzir conhecimento e passa a ser uma espécie de emissário
de algo maior que ele, uma força superior transcendente para a qual ele cumpre
uma “missão” em “sacerdócio”.
E, como se sabe, na
tradição Ocidental a prática religiosa é sinônimo de sacrifícios pessoais — sacrifícios
que variam em grau e intensidade: podem ir desde não comer carne vermelha em um
dia específico do ano até a autoimolação. Daí a razão pela qual, ultimamente, tem-se
aceito com tanta facilidade que professores sejam ameaçados, ofendidos ou
espancados por alunos. Daí a razão pela qual, ultimamente, tem-se culpado única
e exclusivamente o professor quando o aluno não aprende. Daí a razão pela qual,
ultimamente, se especula tanto sobre levar a informática para a escola, quando
na mesma escola ainda faltam livros didáticos e fotocópias são um luxo. Esteja
ele sendo agredido, reprovando um aluno ou trabalhando em condições precárias,
é sempre o professor que falhou, pregam os “especialistas”. É o ofício visto
como sacrifício.
Em meio a esse ambiente
moral, falar em interesses pessoais (que dirá lucro) ganha ares de
mesquinharia. É digno de vergonha um professor confessar que dá aulas apenas
para se sustentar, porque é o que sabe fazer, porque gosta ou simplesmente porque
é a única profissão que oferece duas férias por ano, como dizia o físico e
professor “quase Nobel” César Lattes. De professores exigem-se sempre ideais
elevados. Não basta ser professor, tem que participar. Educação não vem mais de
casa, deve ser adquirida na escola. O professor, que em dias remotos foi
chamado respeitosamente de mestre, tornou-se “educador”.
E o moderno educador deve
ser ao mesmo tempo pai, mãe, psicólogo, catequista, enfermeiro, monitor de
computação, ideólogo, recreador e agente social do corpo discente ao qual
serve. Ensinar e cobrar o que se ensinou tornou-se sinônimo de educação
retrógrada. A escola, que antes servia para transmitir às novas gerações a
tradição cultural da humanidade, tornou-se uma mistura de depósito de crianças
e adolescentes, shopping, parque temático e colônia de férias. Oficialmente, na
escola entra de tudo, de danças eróticas a rap com letras sexistas e violentas;
extraoficialmente, o que entra não cabe numa mochila de rodinhas: armas
brancas, armas de fogo, drogas lícitas e ilícitas, socos ingleses, celulares
para os mais diferentes objetivos e por aí vai. Criticar essas práticas é
condenar-se a ser tachado de preconceituoso.
Aluno não é mais aluno: é
educando, pois, como se diz por aí, a palavra “aluno” significa “sem luz” em
latim (não é verdade). Vê-los como seres “sem luz” é inadmissível, e não louvar
sua linguagem e cultura pessoais (quase sempre televisivas e de gueto) é
fascismo. Ensinar alta cultura e valorizar a erudição é entendido como
deplorável elitismo fora da realidade. Diante disso, muitos “especialistas”
costumam retrucar sarcasticamente: “e para que serve para o educando saber quem
foi Shakespeare?”. Como responder a isso? Como responder a uma pergunta que é
tola por si só, mas que chega carregada de um tom pretensamente revolucionário
e democrático? Afinal, não foi profetizado que “os simples herdarão a Terra”?
De fato, já estão
herdando (Rei Lear?). Já vi diversos professores defendendo que normalistas
alfabetizadoras deveriam ser mais bem remuneradas do que pós-doutores que
passaram décadas estudando para chegar aonde chegaram. A justificativa seria a
de que ensinar a ler e escrever é mais “nobre” do que tagarelar em uma cátedra.
Se é ou não, pouco importa. O fato é que
mais uma vez, passionalmente, sem reflexão, se desdenham os espinhos da teoria
em função da ação missionária direta. Ao mesmo tempo, curiosamente, é
interessante notar que não é comum entre professores universitários assumir o
“discurso missionário” no trato com seus alunos de graduação. Ele é difundido,
sobretudo, com relação ao ensino primário, fundamental e médio, ou seja: entre
aqueles que recebem a teoria, não entre os que a produzem. Exceção feita,
claro, para certos catedráticos em didática, sendo nesses casos impossível
saber até que ponto trata-se de mera retórica — até porque boa parte deles
jamais lecionou para as séries sobre as quais teoriza.
O “discurso missionário”
é tão forte que basta observar o resultado de concursos do tipo “Professor do
Ano” ou “Professor Nota 10” para identificá-lo em sua forma mais avançada. Não
raras vezes os vencedores são profissionais pouco preparados. Pessoas que mal
sabem ler, mas ensinam a ler. Pessoas que mal sabem contar, mas ensinam a
contar. Em contrapartida, esses “educadores modelo” enfrentam todo tipo de
obstáculo para cumprir sua “missão”. Às vezes acordam às quatro horas da
madrugada, para fazer uma viagem de barco de três horas que os levará até um
casebre perdido na floresta amazônica, onde darão aulas para cinco ou seis
crianças da região. Sem querer tirar o mérito inegável destas ações, é preciso
reconhecer que nesses casos se premia o sacrifício, não a competência
propriamente dita; que, sim, pode até existir, mas é irrelevante diante do
exemplo de abnegação que as ações representam.
Apesar de ter ganhado
força no mundo pós-moderno, o “discurso missionário” está entranhado em nossas
raízes culturais há séculos. Por exemplo: praticamente todo manual de filosofia
desdenha a contribuição dos sofistas gregos, apontando como um de seus
principais vícios o fato de que cobravam para ensinar. Muitas vezes não passam
de notas de rodapé. Só aparecem para servir de contraponto à figura gigantesca
de Sócrates, o pensador humilde e corajoso que ensinava de graça e que morreu
para defender seus princípios. A célebre frase “tudo que sei é que nada sei”,
uma das sentenças mais mal compreendidas de todos os tempos, sempre citada como
exemplo de ideal pedagógico, joga por terra toda a obra conjunta dos
“gananciosos” sofistas.
Na Idade Média, durante o
nascimento das universidades, quando mestres clérigos passaram a ministrar um
ensino desligado do contexto monástico, para burgueses, foram duramente
atacados. O futuro santo Bernardo de Claraval, o poderoso abade de Cister, foi
um dos críticos mais ferozes da nova pedagogia. Acusava seus defensores de
serem meros “vendedores de palavras”, sacrílegos culpados de oferecer para quem
quisesse pagar a “ciência que só a Deus pertence”. Muita gente foi parar na
fogueira por conta disto.
Os séculos seguintes
apagaram as fogueiras e fizeram da educação um direito de todo cidadão. Educar
as massas tornou-se uma “missão” civilizadora que deveria ser levada a cabo a
qualquer custo, mesmo que o preço fosse a vulgarização do conhecimento e o
nivelamento por baixo dos envolvidos no processo educacional, tanto dos mestres
quanto dos alunos. Dessa forma, o que ocorreu não foi uma vitória de nenhum dos
lados, e sim um armistício, armistício que gerou uma aliança. As duas
perspectivas se fundiram. Infelizmente, o que poderia criar um edificante
caminho do meio ao estilo budista acabou por degenerar-se e transformou o
professor em um estereótipo sem nuances.
Hoje o “educador” é
infantilizado em seu próprio ambiente de trabalho. É constrangido a participar
de ridículas dinâmicas de grupo, brincando de dança das cadeiras, trocando
fitas coloridas, pulando corda ou falando com fósforos acesos na mão. Vê-se
levado a ler páginas e mais páginas de metáforas tão bonitinhas quanto inúteis
sobre “alunos-sementinhas que crescem com a água do conhecimento” ou sobre
“alunos-folhas-ao-vento a quem devemos recolher e dar direção”.
E o pior é que tais
práticas bizarras e alienantes são vendidas pelos “especialistas” como o suprassumo
da modernidade educacional. Quem não se submete é malvisto e tachado de
“corta-onda”, “tradicionalista”, “antigo”. O resultado é que, cada vez mais, o
necessário abismo cultural entre “educandos” e “educadores” diminui. Ambos
cantam as mesmas músicas no chuveiro, assistem às mesmas novelas descerebradas,
votam nos mesmos candidatos no Big Brother, postam as mesmas piadinhas no
facebook, leem os mesmos livrinhos da moda e assistem aos mesmos filmes pipoca.
Assusta o fato de que muitos professores se orgulham de sua “postura
descolada”, acusando seus colegas mais ortodoxos de serem chatinhos pseudointelectualoides,
como se ser ou almejar ser um intelectual fosse algo negativo por definição. Já
que vivemos na era das fobias, será que essa é a intelectofobia? Em todo caso,
vale lembrar que na China da Revolução Cultural mandaram intelectuais para
campos de trabalho, proibidos de ler e debater, para aprenderem a ser “povo”.
O professor está se
afastando de forma irrecuperável de sua função intelectual. De contestador e
crítico da realidade por meio do ensino, entrega-se sem reagir à condição de
marionete artificialmente alegre. Se existe de fato uma “missão” a ser
cumprida, trata-se de uma missão suicida. E a lavagem cerebral a qual são
submetidos os acadêmicos dos cursos de licenciatura, por meio do “discurso
missionário”, levam-nos a se resignar com facilidade excessiva às suas
terríveis consequências. Perdemos os referenciais. Há tempos que o ideal de
professor deixou de ser o genial Aristóteles para tornar-se a professorinha
Helena da novela “Carrossel”.
Parem de dar parabéns aos professores e comecem a dar dinheiro publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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