A Netflix funciona como uma locadora dos anos 1980: na prateleira da frente ficam os títulos mais populares e logo atrás vem uma enorme quantidade de obras menores e derivativas. Não tem problema algum se você consegue se divertir com coisas tipo “O Poço”, “The Witcher”, “Drácula” e mais uma temporada de “La Casa de Papel”. Mas se você procura um pouco mais de “sustança”, aí a coisa complica.
A Netflix que eu quero teria todos os filmes de Jean-Luc Godard, Federico Fellini, Woody Allen, Alfred Hitchcock e uma curadoria que nenhum algoritmo é capaz de fazer. Tipo assim: você acabou de assistir “Era Uma Vez em… Hollywood”, veja agora todas as produções que inspiraram Quentin Tarantino: “Maverick”, “Besouro Verde”, “Meu Ódio Será Tua Herança”, “Sem Destino” e um documentário sobre Charles Manson.
Mas a Netflix funciona como uma locadora dos anos 1980: na prateleira da frente ficam os títulos mais populares e logo atrás vem uma enorme quantidade de obras menores e derivativas. Não tem problema algum se você consegue se divertir com coisas tipo “O Poço”, “The Witcher”, “Drácula” e mais uma temporada de “La Casa de Papel”. Mas se você procura um pouco mais de “sustança”, aí a coisa complica. Como vivo me embrenhando nas selvas dessa locadora virtual, resgatei alguns tesouros que espero que você curta. Divirta-se.
Imagens: Divulgação / Reprodução Netflix
Esse é do pacote Orson Welles. O primeiro é um filme noir de 1946 e conta a história de um criminoso nazista (Welles) que se refugia numa cidadezinha de Connecticut e é perseguido por um agente do FBI (Edward G. Robinson). A trama é extremamente bem conduzida e brinca com as emoções do espectador, como todo bom suspense deve fazer. Mas o mais interessante é prestar atenção aos planos e os movimentos de câmera. As mudanças que Orson Welles fez na narrativa cinematográfica a partir de “Cidadão Kane” (1941) continuam relevantes e são muito mais ousadas que 90% do que é feito hoje em dia. A câmera nunca está parada e jamais numa posição óbvia. Depois de “O Estranho”, veja “O Outro Lado do Vento”, produção que Welles morreu sem terminar de montar. A Netflix recuperou o filme, as notas de edição deixadas pelo diretor e terminou a produção, que foi disponibilizada em 2018. O filme é um multifacetado mockumentary (falso documentário satírico) sobre um diretor de cinema Jake Hannaford (John Huston) que também não consegue terminar um filme de vanguarda, considerado sua obra-prima. Depois de assistir a “O Estranho”, você vai entender que “O Outro Lado do Vento” era o caminho natural para um diretor sempre inventivo e inquieto. Se ainda estiver no pique, veja o documentário “Serei Amado Depois de Morrer” (2018), de Morgan Neville, que conta a história por trás de “O Outro Lado do Vento”.
David Lynch é um dos cineastas mais provocativos do cinema americano. O humor dele é desconcertante e incômodo, mas é só se deixar levar pelas imagens surrealistas e pelos diálogos absurdos que você acaba fisgado. Comece com o curta-metragem “What Did Jack Do?”, estrelado pelo próprio Lynch e por um macaco falante (uma boca humana é sobreposta sobre a cara do símio). O filme é um longo interrogatório policial que pretende responder à velha questão “Por que a galinha atravessou a rua?” Se gostar, mergulhe em “Twin Peaks”, que é, digamos, uma continuação da revolucionária série concebida por Lynch e pelo roteirista Mark Frost em 1990 e que influenciou, entre outros, “Arquivo X”. A história original mostrava o agente federal Dale Cooper (Kyle MacLachlan) investigando o brutal assassinato da estudante Laura Palmer (Sheryl Lee) em Twin Peaks, uma cidadezinha do estado de Washington. Nada é exatamente o que parece ser e o agente é perturbado por estranhos sonhos premonitórios. O crime é desvendado ao final da primeira temporada e a segunda, que foi ao ar em 1991, perdeu muito do seu encanto. Esta “terceira temporada”, produzida pela Netflix, é ainda mais misteriosa e esquisita que a original. Os personagens estão de volta, mas é como se a série original estivesse fora do alcance deles. Tudo é semelhante, mas bizarramente distorcido e nada faz muito sentido. Mas na verdade, o segredo para entender a trama é bastante simples: para onde vão todos os personagens da sua série favorita quando ela acaba? Como eles fariam para retornar a um lugar que não existe mais e para continuar uma trama que já não faz sentido? É isso o que move a “terceira temporada” de “Twin Peaks”, uma meta-ficção que é, de longe, a produção mais genial da “era do streaming”.
Ok, agora que você entrou no “Bizarro World” da Netflix, nada mais vai assustá-lo. Então procure o documentário “Jim e Andy”, que conta o processo interpretativo de Jim Carrey (um completo maluco) para fazer o papel de Andy Kaufman (um doido de pedra) na cinebiografia “O Mundo de Andy” (1999). Kaufman (1949-1984) foi um humorista de espírito dadaísta que fazia questão de borrar a linha que separa a ficção da realidade. Ele se apresentava como um imigrante chamado Latka Gravas e fazia números completamente sem sentido como acompanhar o tema do “Super Mouse” numa vitrolinha e, a seguir, surpreender todo mundo com uma imitação irretocável de Elvis Presley. Kaufman era tão doidão que inventou uma segunda personalidade, Tony Clifton, um humorista agressivo e misógino que tratava todo mundo aos pontapés. Clifton também fazia shows de stand up, mas estes eram completamente diferentes dos de Kaufman. Eles até se apresentaram juntos em pelo menos uma ocasião, com o agente do artista disfarçado como o personagem criado por Kaufman. Pra viver esse humorista maluco em “O Mundo de Andy”, Jim Carrey “virou” Andy Kaufman. O processo de incorporação foi tão intenso que Carrey se comportava como Kaufman mesmo quando não estava em cena — ou principalmente quando não estava em cena, que é onde o documentário se desenrola. É preciso ver para crer. “O Mundo de Andy” não está na Netflix, infelizmente, mas procure por Andy Kaufman no YouTube. Existem muitos vídeos das apresentações dele. Depois disso veja o documentário para entender o estrago que ele fez na cabeça de Jim Carrey.
Miles Davis é um dos maiores jazzistas de todos os tempos. Seu talento musical o fez ir muito além do bebop, onde começou, e seguir inventando moda, como o cool jazz, o jazz rock, e, já no fim da carreira, o fusion, mix de jazz, música eletrônica e hip hop. Miles era arrogante e encrenqueiro, mas teve a generosidade de identificar e promover muitos jovens talentos. Era apaixonado e amoroso, mas tinha um ciúme doentio da segunda mulher, a dançarina Francis Davis, que ele forçou a abandonar uma bem-sucedida carreira na Broadway para se transformar em dona-de-casa. Miles trocava de Ferraris todo ano, mas se via como uma vítima do sistema. Era extremamente metódico e comprometido nos shows e gravações, mas enlouquecia quando ficava sem heroína e cocaína. Esse personagem fascinante e complexo emerge por inteiro nesse excelente documentário de Stanley Nelson. Uma obra-prima. A trilha sonora também é espetacular, naturalmente.
O mundo fez um carnaval com o Oscar de “Parasita” e teve até gente escrevendo (eu juro!) que essa era a maior vitória do marxismo desde a revolução russa de 1917. Menos, gente, menos. A premiação foi apenas a bilionária Califórnia fazendo o que faz melhor: incorporar talentos de várias partes do mundo para gerar mais riqueza para os Estados Unidos. É claro que “Parasita” merece o Oscar. É um filme extremamente bem escrito, bem dirigido e inteligente o suficiente para evitar os clichês do cinema social. Mas uma boa cinematografia é resultado de anos e anos de uma produção cultural intensa e diversificada, coisa que a Coreia do Sul vem fazendo há muito tempo. O K-Pop e os muitos thrillers de ação é que possibilitaram o surgimento de “Parasita”. E, pra entender isso, é fundamental assistir a “O Hospedeiro”, um filme de monstro dirigido em 2006 pelo mesmo Bong Jon-Ho de “Parasita” e com o mesmo Song Kan-ho (o “pai”) num dos papeis principais. “O Hospedeiro” conta a história de uma estranha criatura, mistura de polvo com Godzilla, que aparece às margens rio Han, em Seul, e “sequestra” a neta de uma família local, forçando os sobreviventes a empreenderem uma perigosa missão para resgatá-la. Assista e constate: um Oscar não nasce do nada.
Humor, pra funcionar, precisa ser duas coisas: anti-establishment e, se possível, engraçado. Dá até para relevar piadas ruins, só não dá pra perdoar humoristas que se rendem ao status quo e fazem uma comédia submissa aos poderosos do momento. Dave Chappelle, que sempre foi um subversivo, entende exatamente onde está o establishment e faz um show sem concessões, com piadas sobre brancos, negros, asiáticos e com a “Turma do Alfabeto” que, nas palavras dele, resolveu sequestrar o abecedário para ela, ou seja, a galerE LGBTQ+. O show causou enorme polêmica nos Estados Unidos quando estreou no ano passado e é fácil entender por quê. Nós vivemos num mundo tão surreal que a biografia do Woody Allen é censurada por uma editora de livros sob aplausos do jornal “The New York Times”, um ex-campeão da liberdade de expressão. Dave Chappelle passa boa parte do show investindo contra esse “Novo Macartismo”, uma poderosa coalisão de estúdios de cinema, jornais, TVs, redes sociais e grupos de pressão. Mas não se preocupe: assim como Ricky Gervais e a turma do “Charlie Hebdo”, ele também bate forte da extrema-direita e no “trumpismo”, que muitas vezes se aproveita da bandeira libertária para impor sua própria agenda autoritária. Como se não fosse suficiente, Chappelle ainda é muito engraçado. Nem precisava, mas ele é.
O que ver na Netflix enquanto você não pode sair de casa publicado primeiro em https://www.revistabula.com
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